Opinião
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25 de junho de 2024
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16:58

New Orleans e os sentidos da reconstrução (por Tarson Núñez)

Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Tarson Núñez (*)

Nos debates sobre a reconstrução de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul após a catástrofe climática de maio um exemplo tem sido recorrente. Muitos políticos, urbanistas e empresários têm constantemente se referido à reconstrução de New Orleans após o impacto do furacão Katrina em 2005 como um modelo que pode ser replicado em nossa realidade local. O caso da capital da Louisiana, nos Estados Unidos, serviu inclusive para justificar a presença de uma empresa de consultoria internacional, a Alvarez & Marsal, no centro do planejamento das medidas de reconstrução em nosso estado. Mas esta referência a New Orleans nunca vem acompanhada de uma avaliação mais cuidadosa do que aconteceu naquela cidade norte-americana.

Nas últimas duas semanas tive a oportunidade de conversar com pessoas que não apenas viveram diretamente a realidade de New Orleans na reconstrução, como participaram e movimentos sociais e estudaram detidamente os resultados do processo. Uma primeira conversa foi com Ruth Idakula, norte-americana de origem nigeriana, uma moradora da cidade e ativista de movimentos sociais. Ruth foi atingida, teve que ser deslocada para outra cidade e quando pode voltar se envolveu nos movimentos dos cidadãos atingidos que lutavam por moradia digna. Ela contou não apenas do ativismo e das lutas, mas também de sua experiência pessoal de mãe de três filhos em idade escolar.

A outra conversa foi mais formal, quando tive a oportunidade de participar de um debate promovido pelo Grupo de Pesquisa Identidade e Território, ligado ao Programa de Pós-graduação de Planejamento Urbano e Regional (PROPUR) da UFRGS. Neste debate eu cumpri o papel de debatedor com o professor Aaron Schneider, da Universidade de Denver, nos Estados Unidos. O professor Schneider coordenou uma extensa pesquisa sobre o processo de reconstrução quando viveu em New Orleans e trabalhava na Universidade Tulane, naquela cidade. Durante vários anos os pesquisadores coordenados por ele estudaram os impactos sociais, urbanísticos, políticos e culturais na cidade durante a reconstrução. Foi um trabalho multidisciplinar envolvendo técnicas quantitativas e qualitativas, analisando dados estatísticos, realizando entrevistas em profundidade e aplicando pesquisas de opinião.

Estas conversas foram um profundo aprendizado acerca dos impactos das decisões atuais na definição de um futuro pós-catástrofe climática. Os depoimentos de ambos me mostraram que a reconstrução não é um processo neutro, técnico, que vai apenas recompor de forma neutra a vida dos cidadãos afetados direta ou indiretamente pela enchente. New Orleans nos mostra que a reconstrução é orientada por interesses e relações de poder. A experiência mostra que os bilhões de dólares aplicados na reconstrução foram apropriados de maneira desigual pelos distintos grupos sociais, que a reconstrução gerou vencedores e perdedores. Nos Estados Unidos se estima que US$ 21 bilhões foram injetados pelo governo federal para a reconstrução da cidade, aqui no Brasil serão até agora já foram anunciados R$ 91 bilhões para a recuperação do Rio Grande do Sul. A experiência mostra que é fundamental que a sociedade discuta de maneira mais profunda de que forma este dinheiro vai ser aplicado.

Pois em New Orleans, segundo o professor Schneider, a reconstrução foi orientada e hegemonizada por um setor da elite local, que implementou uma visão de reconstrução baseada no fortalecimento de alguns setores empresariais mais conectados com uma visão neoliberal de desenvolvimento. Para eles o vital era reconstruir a cidade a partir do apoio de investidores externos, vinculados aos setores mais integrados à economia global. A reconstrução teve como objetivo fortalecer sobretudo o setor imobiliário, o turístico e os serviços, que eram vistos como de maior potencial de crescimento.

Em New Orleans, quase vinte anos depois do furacão já é possível identificar os vencedores e os perdedores. A reconstrução da cidade beneficiou em muito o setor imobiliário. Em média o preço da moradia na cidade hoje é em média 34% mais alto do que era antes do furacão. A reconstrução privilegiou aqueles projetos que, à luz dos interesses do mercado imobiliário, teriam mais rentabilidade. Isto direcionou os investimentos para projetos voltados para a classe média, os mais ricos e os investidores externos interessados na valorização de ativos imobiliários. 

Outro setor vencedor foi o setor do turismo. New Orleans sempre teve uma vocação turística, sobretudo por conta de sua cultura local vinculada à cultura e as raízes negras da cidade. O Jazz, o Mardi Grass (o carnaval local) os bares e as festas sempre atraíram muitos turistas para a cidade. Esta vida cultural se fundamentava em fortes laços culturais comunitários e se baseava no pequeno e tradicional comércio local, quase sempre vinculado à comunidade negra da cidade. Com a catástrofe quase todos estes empreendimentos quebraram e foram substituídos por empresários de fora, grandes redes que, apoiadas pelos recursos para a reconstrução, ocuparam o seu lugar. Antigos espaços de cultura popular foram substituídos por restaurantes de perfil mais sofisticado. A cultura popular foi sendo diluída por um modelo mais “moderno” e “global” de serviços turísticos.

Outros grandes vencedores do processo de reconstrução de New Orleans foram as empresas privadas de educação de todo o país. Este problema, em verdade, é anterior ao furacão, mas é importante referir pois ele é protagonizado justamente pela empresa Álvarez e Marsal. A A&M é a mesma empresa que hoje usa justamente a experiência em New Orleans como credencial para sua atuação em nosso estado. Pois a A&M havia sido contratada para “qualificar” o sistema de educação da cidade. Neste meio tempo veio o furacão, e o impacto da tragédia foi importante para viabilizar que o governo local pudesse implementar sem resistência uma polêmica medida sugerida pela empresa: a privatização total do sistema de educação na cidade. Todas as escolas foram entregues para o setor privado, sendo a rede pública substituída por um sistema de vouchers em que cada família recebia duzentos dólares para pagar uma escola. Por conta disso grupos privados de educação de todo o país foram atraídos para se instalar New Orleans, criando uma nova realidade no setor de serviços da economia local.

Do ponto de vista destes setores vencedores New Orleans é hoje uma cidade mais moderna, mais integrada na economia nacional e internacional, com um forte e dinâmico setor imobiliário, com um setor turístico capaz de atrair um público mais sofisticado e todo um setor de serviços moderno e bastante integrado. Este sucesso aparente esconde, no entanto, uma realidade mais complexa. E as estatísticas mostram evidências claras de que a recuperação da cidade não foi tão efetiva. New Orleans tinha cerca de 480 mil habitantes antes do furacão, hoje os últimos dados mostram que a cidade tem 384 mil habitantes. A cidade, portanto, perdeu quase 20% da sua população original, o que é um indicador de perda de dinamismo econômico.

Ao falar deste contingente de população que foi expulsa da cidade pelo furacão e não foi recebida de volta podemos começar a refletir também sobre os perdedores no processo de reconstrução. Pois, em que pese os bilhões de dólares investidos na recuperação das estruturas urbanas e da economia local, a verdade é que foram muitos os prejudicados pelo processo. Os primeiros e mais facilmente identificáveis se localizam entre a população mais pobre da cidade, aqueles que dependiam das políticas de moradia popular mantidas pelos governos. 

Nos Estados Unidos existe uma forte tradição do que eles chamam “public housing”, uma política pública de moradia na qual o governo constrói conjuntos habitacionais que são alugados às populações de renda mais baixa. Pois em New Orleans, antes do furacão, havia mais de 8 mil unidades habitacionais deste tipo. Muitos desses conjuntos habitacionais foram derrubados durante o processo de reconstrução, com a promessa de que seriam todos reconstruídos. Em 2015, dez anos depois da passagem do furacão, apenas 1829 haviam sido reconstruídos, e apenas uma parte deles tem aluguéis acessíveis para as classes mais pobres. Portanto a recuperação do mercado imobiliário em New Orleans se deu às custas da virtual eliminação da moradia popular. Como já mencionei acima, o preço das moradias está em média 34% mais caro hoje do que era antes. Bom para o mercado imobiliário, ruim para os moradores de renda mais baixa.

Mas para além das distinções de classe, a reconstrução de New Orleans se fez também em detrimento de perfis de gênero e de raça. Em termos étnicos, a população negra, que correspondia a 65% dos moradores da cidade, enfrentou muitas dificuldades para resistir ao processo elitizado de reconstrução. Os pequenos negócios de propriedade de empreendedores negros sofreram o impacto da destruição, mas não se beneficiaram da reconstrução. No French Quarter, o distrito turístico da cidade, os preços dos imóveis subiram ainda mais do que a média da cidade. As propriedades ali tiveram um aumento de 75% nos seus preços. Isso contribuiu para a expulsão dos pequenos negócios tradicionais de propriedade dos negros, que foram substituídos por empresários brancos, muitas vezes vindos de fora da cidade.

E este novo padrão de negócios na New Orleans reconstruída se refletiu também na constituição de um mercado de trabalho segregado, em detrimento das mulheres, dos negros e dos latinos. A pesquisa do professor Schneider mostra que os melhores empregos, nos dinamizados setores do turismo e dos serviços, foram ocupados por trabalhadores brancos. Aos negros e latinos, em especial às mulheres, foram reservados os trabalhos secundários e de menor remuneração, nas cozinhas ou na limpeza. Estes são, portanto, mais alguns dos perdedores no contexto de uma reconstrução voltada para o sucesso dos investidores privados.

Por fim, o impacto do modelo de reconstrução sobre as comunidades negras também se expressa na forma de uma violência simbólica, da destruição de laços comunitários. Ruth conta que a privatização das escolas representou também em uma mudança qualitativa nos estabelecimentos escolares. Nas escolas públicas do período anterior ao furacão os professores eram geralmente negros, faziam parte da comunidade. Mais do que isto, eram uma categoria altamente sindicalizada e organizada, que formava parte de uma classe média negra. Os professores tinham laços profundos, culturais e comunitários com os seus alunos. Nas novas escolas privadas, que vieram de outros estados do país por chamamento do governo, os professores eram outros, assim como as regras de funcionamento e a cultura institucional. Os filhos de Ruth se queixavam da distância cultural e da falta de laços culturais dos novos professores com seus alunos.

Todo o processo de reconstrução de New Orleans foi conduzido de forma tecnocrática e autoritária, de cima para baixo. Grande parte da população ainda estava fora da cidade, nos abrigos a que tinham sido conduzidos e de onde voltaram muitos meses depois. As decisões foram sempre tomadas nos circuitos empresariais das consultorias e dos governos do município e do estado da Louisiana, sem ouvir a população. Os cidadãos comuns, mesmo quando se posicionavam de uma forma ativa e protestavam, foram excluídos das decisões sobre como e no que os recursos da reconstrução deveriam ser aplicados.

Os impactos de uma reconstrução, portanto, não são neutros. O processo gera vencedores e perdedores e isto precisa ser discutido. No caso de New Orleans, como nos mostram Ruth e Aaron, a reconstrução permitiu a consolidação de um modelo de desenvolvimento que tem seu foco apenas na valorização do capital, sem se preocupar com as pessoas e as comunidades. A ideia por trás desta concepção é a de que este modelo é o único que pode trazer prosperidade, e que isto em algum momento vai beneficiar a todos. No entanto a vida mostra que os benefícios deste modelo são direcionados para alguns, em detrimento da maioria. New Orleans deveria ser vista como um exemplo do que não se deve fazer.

Reconstruir um território para todos implica em olhar a economia para além dos interesses imediatos de apenas uma parte dos investidores privados. A reconstrução, no caso do Rio Grande do Sul e de Porto Alegre, precisa pensar as cidades a partir dos interesses da maioria da população. Os bilhões de reais que serão investidos no processo de recuperação deste território precisam ser dirigidos prioritariamente para os que mais precisam, e não para os que mais tem a ganhar. Pensar a reconstrução a partir de uma lógica privatista leva à reprodução dos mecanismos de exclusão social característicos de nossa sociedade atual. 

Como ensina o prêmio Nobel de Economia Joseph Stiglitz, um processo de desenvolvimento só é sustentável na medida em que é capaz de propiciar uma melhoria de qualidade de vida para todos os cidadãos. Seguir o modelo neoliberal de New Orleans pode até permitir que alguns setores prosperem, mas não é um caminho sustentável ou desejável para nosso estado no longo prazo. É fundamental que a reconstrução seja baseada em um modelo inclusivo, participativo e sustentável. O exemplo de New Orleans ensina que é a cidadania, e não as consultorias privadas, quem precisa ter uma voz ativa na reconstrução de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul.

(*) Doutor em Ciência Política e pesquisador do Observatório das Metrópoles

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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