Opinião
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17 de junho de 2024
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07:12

Indecências (por Céli Pinto)

Ato contra o PL 1904 em Porto Alegre. Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Ato contra o PL 1904 em Porto Alegre. Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Céli Pinto (*)

Começo pedindo desculpas à leitora e ao leitor, pois indecência não é um conceito analítico da ciência política ou de qualquer outra ciência das humanidades, mas é a única palavra que encontro para qualificar as atuais decisões dos presidentes das duas casas do Congresso Nacional: Rodrigo Pacheco, ao colocar em votação a PEC 45/2023, de sua autoria, e Arthur Lira, ao decretar regime de urgência ao PL 1904/24, de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante(PL-RJ).

Por que são decisões indecentes? Porque nenhuma tem a ver com as crenças, sejam elas quais forem, dos três envolvidos, nem com interesses e demandas de seus eleitores e eleitoras, que em grande parte nem sabe o que ocorre no legislativo brasileiro. Também não têm a ver com questões mais humanitárias, como o bem-estar das populações envolvidas, caso tais excrecências (me permitam novamente um proposital juízo de valor) forem aprovadas. As razões para colocá-las em pauta são despudoradamente de baixo calão. 

Antes de analisar cada uma, a PEC e o PL, vale apontar o esforço que a classe política de todas as cores ideológicas, com raras e honrosas exceções, vem fazendo para que a discussão no Brasil – sobre o porte e o consumo de drogas ilegais e sobre o aborto – tenha sempre um tom infantiloide (não podemos falar porque tem crianças na sala) quando não histérico (padres, em  tese celibatários, bradam contra o aborto  com bonequinhos de plástico na mão, tendo como coro todo tipo de neopentecostalismo).  O país carece de uma urgente discussão adulta sobre os dois temas, mas isto parece não interessar às elites partidárias.

Comecemos pela PEC 45/2023, que trata, como seu nome indica, de uma emenda à Constituição Brasileira de 1988, de autoria do senador Rodrigo Pacheco.  Preste-se atenção, o senador é presidente do Senado e, por conseguinte, presidente do Congresso Nacional! Uma proposta de emenda de autoridade deste quilate, suporia, no mínimo, considerar a responsabilidade que seu cargo impõe. Pois o senador Pacheco quer, com a PEC, criminalizar toda pessoa que portar drogas ilícitas, independente da quantidade. 

Se a opinião do senador estivesse calcada em estudos científicos, ou em profunda e devotada fé religiosa radicalmente contrária a todo o consumo de droga, poderia ser até aceitável numa democracia. Não é o caso. Não se tem a menor ideia sobre a opinião do senador a respeito do consumo de drogas ilícitas, mas sabe-se o que o levou a propor esta emenda à constituição: enfrentar o Supremo Tribunal Federal, que estava votando a descriminalização do porte da maconha e já tinha um placar de 5 contra 3. 

Este é o problema. O que importa a liberdade individual das pessoas para usarem drogas? Afinal a grande maioria dos usuários continua tão ou mais produtiva para os interesses do capitalismo. Ou o senador pensa que toda a cocaína e maconha que chega aos Estados Unidos é apreendida nos portos e aeroportos?  Ou, ainda, que os mais de dezenas de milhões de consumidores estadunidentes destas drogas ilícitas vivem em cracolândias pelas ruas de Nova York, Los Angeles, Chicago?  O senador quer prender traficantes? Quem mesmo, senador? Os grandes traficantes de droga no mundo, junto com os grandes produtores de armas, são fundamentais para girar a roda do capitalismo financeiro e, inclusive, para sustentar as guerras, cinicamente condenadas em declarações de líderes dos países mais ricos do mundo. Ou o senador quer nos fazer de idiotas, acreditando que ele defende a PEC porque quer acabar com o trafico de drogas no país?

Alguém poderia argumentar que o senador Pacheco se preocupa com a saúde pública, com a frase velha e surrada “é um problema de saúde pública”. Ora, senador, problema de saúde pública se resolve com políticas públicas de saúde, com o perdão pela redundância, para que não se pense que política pública é polícia batendo e perseguindo dependente químico pobre e negro pelas ruas.

Isto posto, presidente do Congresso Nacional, presidente do Senado da República, senador Rodrigo Pacheco, o seu propósito com esta PEC, considerando as reais e complexas questões que a presença de drogas ilícitas trazem para o planeta, são simplesmente indecentes!

Passemos agora ao PL 1904/24, de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante do PL do Rio de Janeiro, que criminaliza o aborto e o torna análogo a crime de homicídio, se feito após 22 semanas, ao equiparar a interrupção da gravidez pelos motivos listados desde 1940, somado ao caso de feto anencéfalo, que foi tornado legal pelo STF em  abril de 2012. 

Impossível começar a discutir o tema sem considerar as palavras do deputado Sóstenes sobre as razões para propor este PL: “O presidente mandou uma carta aos evangélicos na campanha dizendo ser contra o aborto. Queremos ver se ele vai vetar. Vamos testar Lula.”.  Como o PL foi levado a plenário em regime de urgência pelo presidente Lira, é possível concluir que “testar Lula” foi a razão para a pressa. 

Novamente, apesar da grande distância entre os dois temas, a cartilha parece se repetir. Em primeiro lugar, finge-se ignorar que o aborto é amplamente praticado no Brasil, por mulheres jovens ou maduras, casadas ou solteiras, com filhos ou sem filhos, religiosas ou sem religião. Também não se ignora que as mulheres ricas e de classe média alta o fazem em condições seguras, sob supervisão médica, enquanto as mulheres pobres se submetem às mais torturantes e perigosas práticas para abortar. Daí voltar à questão de o aborto ser um problema de saúde púbica. Se for, é preciso que o tratemos como tal, não como um problema de polícia.

E tem mais: além de mulheres abortarem porque engravidam em condições precárias, econômicas ou emocionais, é preciso considerar que o corpo é inviolável. Ninguém pode (ah, santa teoria liberal!) legislar sobre o corpo de outrem. Qualquer ser humano, e uma mulher grávida desesperada é um ser humano, pode cometer suicídio. Não há lei que impeça, porque a vida, o corpo, tem um pertencimento inalienável. Somente as ditaduras e os fascismos, com tortura e crimes, se arvoram o direito de tortura, vida e morte sobre o corpo do outro (nós o conhecemos bem no Brasil).  

A descriminalização, eu diria até a legalização do aborto, no Brasil ou em qualquer outro lugar, precisa considerar o direito de mulheres serem absolutamente contra o aborto, por questões morais ou religiosas, o que é tão pessoal como serem a favor. Não se trata disso, mas de exercerem um direito sobre o seu próprio corpo, caso queiram, precisem ou tenham necessidade de fazê-lo.

Nada disto importa ao até então desconhecido deputado Sóstenes, pois ele quer implicar com o presidente da república, só isto! É óbvio que também pretende tirar algum proveito deste fato entre seus eleitores e protegidos, nas eleições municipais de 2024, no complicado Rio de Janeiro. E isto é indecente!

Infelizmente, não dá para encerrar este pequeno ensaio no parágrafo anterior, já que o líder do governo da câmara, José Guimarães (PT-CE), ao ser inquirido a respeito da sua orientação ao partido durante a votação da urgência, chegou a afirmar que deixou livre a posição de seus deputados porque o tema “não é matéria de interesse do governo”. Como assim, deputado?  Tornar o aborto legal um homicídio não é uma questão que importe ao governo?  Perdão deputado, mas isto é uma indecência. Pelo menos Marina Silva, Alexandre Padilha, Lula e Janja, os dois últimos com um atraso inexplicável, se manifestaram contra a PL homicida.

(*) Professora Emérita da UFRGS; Cientista Política; Professora convidada do PPG de História da UFRGS

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