Opinião
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11 de junho de 2024
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07:00

“Em busca de um outro tempo” (Coluna da APPOA)

Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Lucia Serrano Pereira (*)

Voltávamos de viagem no feriado do primeiro de maio, com o avião por pousar em Porto Alegre pelas onze da noite. Já estava difícil descer em meio à chuva. Sobrevoamos a cidade por uma meia hora a mais. Imersa na leitura, por vezes eu olhava pela janelinha, raios nas nuvens, melhor nem ver. Abriu uma brecha no tempo e pousamos de uma forma surpreendentemente tranquila. No dia seguinte o aeroporto fechou, já sem condições, e fomos inundados, nossa cidade, nosso estado, com tudo o que veio a seguir e que por muito tempo e trabalho vai nos implicar, profundamente. E disso temos tratado, de muitas maneiras diferentes, ações e falas.

Pensei em voltar a algo da leitura, a que me ocupava e me acompanhava no temporal, e que de alguma maneira levantou um ponto que me pareceu valer a pena registrar e deixar trabalhar. Ler e escrever foram coisas que ficaram também abaladas na desorientação que vai se armando nas catástrofes. Mas são parte do tecido que se vai fazendo para o encontro de palavras-abrigo. Vem do interesse sobre a questão do tempo, aqui não literalmente, no seu sentido físico ( que nessas semanas não paramos de olhar fixo), mas no amplo. Uma expressão me capturou, não naquela quarta à noite mas depois da invasão das águas, quando nos foi proposto falarmos entre os colegas, abrir espaço para falar entre nós do que vinha acontecendo.

Nesse contexto da preparação é que um trecho se anunciou, da leitura da semana anterior, lendo mais uma pequena (valiosa) produção de Byung Chul-Han. Dizia “Portanto a aceleração é a expressão de um rompimento de barragem temporal. Não existem mais barragens que ordenem, articulem ou cadenciem o fluxo do tempo, que pudessem deter e refrear o tempo, dando-lhe uma escora, ou seja, tanto um apoio quanto uma parada.” Claro, a importância das barragens naquele contexto fazia total ressonância. Barragem, o “dar escora” que ao mesmo tempo pudesse apoiar tanto quanto sustentar um fluxo que de outra forma, sem intervalo, pode nos levar de roldão. Deter e refrear.

Este pequeno livrinho que se lê na rapidez de uma fala, de uma conversa em um café ou de uma breve conferência, aponta uma interrogação sobre o trato da temporalidade hoje. Questiona a perda do ritmo, da cadência, podemos dizer da alternância dos tempos quando por exemplo se corre sem parar, ou cada um se vê tomado no excesso, de demanda, de trabalho, do desempenho, do que seja. Quando o tempo se vê desprovido de ritmo, quando há só precipitação “no aberto e no vazio” de forma até mesmo inconsciente, não raro o efeito depressivo pode rondar, cobrando um preço. Desaparece qualquer forma de tempo bom, de se achar no seu lugar e dali poder agir. Um tempo desorientado ( que é também o das catástrofes, mas não só).

O livro se chama “Favor fechar os olhos“, com o subtítulo em busca de um outro tempo. Fechar os olhos, aqui, como uma metáfora de intervalar, interromper, barrar. Acolher algo de um silêncio, como quando se faz um minuto de silêncio para marcar um acontecimento, não raro uma perda. Fazer o ritual que é preciso para registrar e concluir. Dar contorno e não ficar só com muitas janelas abertas ( o que é fascinante, por um lado) no risco de não conseguir efetivamente fechar, se despedir de situações, para podermos abrir e nos situar em outras que vem.

Encontro duas observações preciosas: uma a respeito do silêncio, outra sobre as conclusões. Do silêncio, uma lembrança a partir de Roland Barthes em sua Câmara clara, onde dizia que a fotografia ( tema que desenvolvia no livro distinguindo o punctum, o que nos fisga na foto, do stadium, o que faz um fundo contínuo, espécie de paisagem) precisa do silêncio. Fechar os olhos como dar tempo para a imagem falar no silêncio. Como quando precisamos de um tempo para assimilar algo, costumamos dizer. Sobre as conclusões, o acento vai para o tempo narrativo. Narrações não podem ser aceleradas de qualquer modo. Precisam ser concluídas, pois dali podem produzir um rumo, um sentido.

Algo desse silêncio e das conclusões são necessárias para a subjetividade. Sem o silêncio que marca o intervalo, a subjetividade se dispersa. Não consegue se reenlaçar, e pode ficar entregue ao fluxo contínuo de informação, que não garante que se experimente, de fato, algo que nos permita nos implicarmos. Sem esse reenlaçe, que Byung Chul Han nomeia como retorno, não se pode concluir, então ela ( a subjetividade) se torna depressiva. É de pensar que ele situa como mal do nosso tempo não propriamente a aceleração, que lê como sintoma, mas sim a dispersão. O risco da dispersão, da rarefação.

Voltando à conversa frente a perplexidade da catástrofe encontro uma coluna de Contardo Calligaris na Folha de São Paulo, de já muitos anos atrás. Ele conta que estava na Itália por ocasião de dois terremotos que aconteceram com o intervalo de uma semana. Via as pessoas voltando aos escombros de suas casas. Buscando o que se possa resgatar, de alguma maneira, mesmo que pouco. Faz a associação de que na sua infância vivia também vasculhando escombros de casas, não de terremotos, mas das casas bombardeadas na II Guerra. E faz o comentário de que é comum se dizer – o importante é que sobreviveram, as outras coisas são só coisas materiais… Mas chama a atenção para o fato de que essa afirmação é verdadeira, claro, mas também um tanto falsa. Que não esqueçamos que ali nos objetos também estamos nós. De que eles testemunham de nossas identidades, nosso lugar no mundo e com os outros. Então não é pouca coisa a perda dos objetos. Evidentemente para a vida e para a sobrevivência. Mas também para nos situarmos com relação a quem somos. É contundente. Temos as urgências do agora que são absolutamente cruciais. E além disso vamos precisar lidar com um olhar atento ao trato dos tempos que se processam nas reconstruções.

(*) Lucia Serrano Pereira é psicanalista, membro da APPOA.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


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