Opinião
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25 de junho de 2024
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07:01

As pessoas querem falar sobre a tragédia e a reconstrução (Coluna da APPOA)

Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Robson de Freitas Pereira (*)

“Hoje a cidade acordou toda em contramão”
Chico Buarque¹

Estamos há quase dois meses do início desta que já se instalou como a catástrofe do século em nosso Estado. O trabalho de rescaldo parece ser interminável e ainda não se elaborou as causas. A cada previsão de chuva a angústia retorna e se intensifica; afinal o lixo ainda se acumula nas ruas e nos quintais, a insegurança se atualiza. O acontecimento modificou nossa relação com a natureza, muito já se escreveu e ainda se escreverá sobre isso.

Trabalho de reconstrução é complexo e longo. Passa por apontar responsabilidades, recuperar memórias e projetos que foram levados pela enchente. Muita gente ficou presa no choque da perda, precisam de um tempo para começar um movimento em direção à mudança- sinônimo de reconstrução, necessária e inevitável para quem tudo perdeu. Sabemos que se não houver alguma elaboração que toque a subjetividade mais íntima de cada um, as melhores ideias se perdem no conflito de interesses, os comportamentos serão repetidos, para o bem e para o mal.

Momento de incertezas. Pouca esperança, falta de perspectivas? Por parte de quem? Quem é o outro, quem somos nós? Uma das características atuais; a multiplicidade de grupos, mais ou menos numerosos, mais ou menos influentes nas decisões, nos rumos que estão sendo tomados. Profusão notícias em todas as mídias, a maioria ainda descreve a tragédia e o sofrimento que se repete, outras apontam as inciativas. Aqui, uma observação; a (re)construção é uma possibilidade de mudança ampla; não somente de “oportunidades”, espertezas como diriam (e agiriam) os pensamentos mais estreitos. Mas de correção de rumos, de retomada de posições em prol de uma vida em comum efetivamente mais civilizada.

Nesta tragédia, a solidariedade foi um contraponto positivo. A gigantesca onda de solidariedade que se formou em todo o país (e no exterior), fez com que algumas vozes, surpresas com este reencontro com a brasilidade, expressassem, “como o Brasil gosta de nós!”. Mas, uma das iniciativas musicais de apoio ao Rio Grande já dizia “A peleia vai continuar. Somos todos brasileiros do Rio Grande do Sul”. Sim, os outros brasileiros, também nos consideram brasileiros, com costumes e rituais singulares e uma formação de muitos lugares como retratou Chico Buarque em Paratodos: “o meu pai era paulista/ meu avô pernambucano/ o meu bisavô mineiro/ meu tataravô baiano/mas meu mestre soberano foi Antônio Brasileiro”. Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, cujo pai era gaúcho.

É muito difícil sustentar um sorriso nestas horas. Tanto quanto fazer unidade da diversidade. Mas a música e a disponibilidade para o inesperado fazem um contraponto e nos permitem “ver o inferno e maravilhas”² .

Até nas memórias do terror. Buenos Aires, hora zero. Recentemente, fomos conhecer a antiga ESMA- Escola de Mecânica da Armada, o maior centro de tortura (por onde passaram cinco mil pessoas e sobreviveram duzentas), hoje transformado num centro de memória contra a barbárie tombado pela Unesco (Espacio memoria y derechos humanos). Ficamos impactado pela violência que ainda exala daquelas paredes, dos lugares, dos escritos e depoimentos. E, quando se percorre os escritórios onde se planejava e providenciava a logística para “as ações”, pode-se ver documentado o projeto de estabelecer uma “nova ordem” onde aqueles que não estivessem de acordo seriam eliminados. Poucos, seriam escolhidos para serem reeducados e, os bebês nascidos naquele inferno enviados para famílias que pudessem cria-los na “orientação” considerada “correta” pela ditadura. As avós, depois as mães (de la Plaza de Mayo), foram algumas que se opuseram a este projeto insano.

Com tudo isso, nossos hermanos podem cantar com Chico Buarque, que completou 80: “Apesar de você, amanhã há de ser outro dia”, o você citado encarna o outro que deseja nosso mal, ou que foi negligente em suas funções públicas (afinal, há poucos que sabem exercer uma função de cidadania) mas simultaneamente o Outro que nos habita e nos faz sucumbir à dor, à tristeza e a desesperança. Contra isso, o poeta é fundamental, suas palavras são essenciais; pois interpretam a dor e inventam paraquedas coloridos para que sigamos desejando algo diferente da miséria, da mediocridade e possamos nos reconstruir. Afinal “eu não quebro porque sou macio”³ .

Notas

¹ Verso da música “Querido diário”, Biscoito Fino, 2011.

²  Paratodos. BMG/RCA.1993

³  “Querido diário”

(*) Robson de Freitas Pereira é psicanalista; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). Publicou, entre outros: O divã e a tela – cinema e psicanálise (Porto Alegre: Artes & Ofícios, 2011) e Sargento Pimenta forever (Porto Alegre: Libretos, 2007).

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