Opinião
|
14 de junho de 2024
|
14:32

Aos amigos do outro lado da fronteira (por Jorge Barcellos)

Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil
Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil

Jorge Barcellos (*)

“O mundo do homem feliz é diferente do  mundo do homem infeliz”.
Wittgenstein

A mulher olha a casa destruída pelas chuvas na capital. O entrevistador faz uma pergunta qualquer. Ela diz que vai tirar forças não sabe de onde para reconstruir sua casa. O repórter mostra a cidade parcialmente destruída, com móveis nas ruas, e as casas com as marcas do nível da água. A reportagem do Jornal da RBS corta e passa para outra vítima. Mas agora a cidade é diferente, é Muçum, totalmente destruída pela chuva. Ela diz que “vai deixar o lugar”. Há um silêncio rápido, mas forte na cena. “É que “a ideia de desistir nunca é atraente”, diz Adam Phillips em Sobre o Desistir (UBU, 2024). Ele nos ensina que a desistência, a renúncia e a dúvida são vistos como indignos em nossa cultura. Essa ideia é compartilhada com certa forma pela qual a mídia narra estas histórias da catástrofe da enchente: sempre nos são apresentados testemunhos de pessoas que perderam tudo, mas que estão dispostas a recomeçar. Há, no imaginário gaúcho, a ideia de que a perseverança é qualidade das pessoas fortes. Mas aqui o tema de Phillips é a ambiguidade da esperança: “abrimos mão das coisas quando acreditamos que podemos mudar e desistimos quando acreditamos que não podemos mais“. 

Penso nisso pois tenho um amigo de direita. É mais para conhecido, ok, mas não vamos diminuir muito. Sim, isso também acontece. Seja na família ou no trabalho, é inevitável tecer relações que, se são respeitosas em vários domínios, se desarranjam no campo político. Seja na reunião de condomínio, na feira livre, na mesa de bar, eles estão sempre lá. Os de direita. Você conversa com eles normalmente, são boas pessoas, mas quando passa a falar de política um enorme fosso os separa. Gostaria de dizer que é por causa do acesso à informação, o conhecimento, mas as vezes é apenas a crença, a falta de acesso a informações e não fake news, produto da máquina de guerra construída pelo neoliberalismo para conquistar as consciências, efeito de uma tribo de whatsapp. Agora é um momento importante para a esquerda. A luta eleitoral de 2024 está para começar. Cada um tem o seu papel. Penso que meu papel é encontrar argumentos para convencer aquele conhecido de direita a repensar seu voto. Nesse sentido, caso você tenha também um conhecido ou amigo de direita, meu discurso teria alguns dos argumentos abaixo.

A enchente impõe sacrifícios. Há coisas que teremos de abrir mão para termos a vida que desejamos, sem catástrofes e sem enchentes. Se, para Phillips, o simples desejo de desistir já impõe ao sujeito a face do terror, efeito da revolta, o abandono de uma crença, aqui meu argumento é menos em termos do que a psicologia diz do que em termos do que o autor sugere para a política. Aqui, o ponto de partida é o pressuposto de Phillips que diz que “toda a noção de sacrifício depende de sabermos o que queremos”. O primeiro sacrifício que a enchente produziu foi desistir da casa, do lar. A enchente veio e com ela os cidadãos precisaram desistir de seus lugares. Algumas escolhas terríveis foram impostas aos cidadãos, como a João Alexandre Gonçalves de Morais, de 29 anos, que morava em Cruzeiro do Sul. Ele aguardava, sobre um telhado, o resgate de helicóptero quando a casa desabou. O bairro da cidade foi ‘varrido’ pelo Rio Taquari. Ele havia escolhido Fabiano para ser resgatado primeiro, já que ele, também no telhado, não sabia nadar. O tempo não foi suficiente para o resgate voltar, a casa desabou com as águas e o corpo de João foi encontrado dias depois. Outras escolhas implicaram na separação de famílias, que foram para abrigos diferentes, ou de animais de seus donos. Renunciamos, desistimos por algo melhor, mas nem sempre e isso que acontece. 

A enchente produziu uma sensação justa indignação com a política. O fato de que na região norte, nos bairros Sarandi em Porto Alegre e também Matias Velho, em Canoas, ainda tenham toneladas de lixo nas ruas, provoca indignação da população que apela aos governantes a limpeza com o medo de que, com as novas chuvas previstas para o fim de semana, especialmente dia 16, domingo, possam ainda piorar a situação. Diz Phillips “é como se a ambivalência em relação a nossa vitalidade – a sensação de estar vivo que, ainda que efêmera, nos sustenta – tenha se transformado em uma sensação insuportável e que precisa ser resolvida”. Com todo o esforço para tirar o lixo de suas casas, os cidadãos não sabem se vale a pena todo esse sacrifício, sentem que a inoperância do estado deixa eles todos em precariedade. 

Por que coloco o tema da desistência quando a mídia fala em esperança? É que grande parte da população que foi atingida pela enchente votou em Sebastião Melo. Segundo o TSE, no primeiro turno das eleições, havia uma nítida divisão na cidade e que se confirmou no resultado final. Melo ficou em primeiro lugar em seis das 10 zonas eleitorais no norte e no sul da cidade, justamente as mais atingidas pela enchente. Só para lembrar, das regiões atingidas, somente as ilhas do Guaíba e a região central do município deu vitória a Manoela. Os bairros do Humaitá, Navegantes, Passo da Areia, Vila dos Industriários e Vila Farrapos, integrantes da 11ª zona eleitoral, uma das mais atingidas, os cidadãos deram 34% dos votos a Sebastião Melo.   É a mesma região que em 2016 deu vitória a Nelson Marchezan, com 42,5% da preferência do eleitorado. Bairros como Floresta, São Geraldo e São João, da 2ª Zona Eleitoral, também deram vitória a Sebastião Melo, que também teve votos e saiu vitorioso no extremo sul, nas zonas 160º e 161º, que incluem Ipanema, Tristeza, Cristal e Restinga, entre outros bairros também atingidos. 

Á época, dizia-se que as duas fortalezas eleitorais de Sebastião Melo foram separadas por uma espécie de corredor vermelho de Manuela D’Ávila. A esquerda venceu em parte de zonas atingidas, como o Centro, a Cidade Baixa e o Menino Deus, mas as zonas que não foram tomadas pelas águas foram determinantes, como Bom Jesus, Partenon, Agronomia e Lomba do Pinheiro, das zonas 113 º e 159 º.  A enchente produzirá efeitos eleitorais em 2024? Aqui, a resposta é um depende: depende se os cidadãos afetados pela tragédia saberão que chegou a hora de desistir da direita. É que a maior parte das regiões atingidas tem tradição de votar no projeto neoliberal. São regiões conquistadas por vários mecanismos que vão do populismo ao clientelismo, passando pela influência evangélica, entre outras razões. Frente à catástrofe, é inevitável pergunta: eles abrirão mão de votar na direita neste ano? Diz Phillips “abrir mão é sempre sacrificar algo em prol de outra coisa que acreditamos ser melhor. Não importa se é da convicção, da liberdade de expressão, da sociabilidade, da vontade, do sentido ou da própria vida que estamos desistindo “–aqui, nesses termos, desistir é desistir de uma opção política

Quando a campanha política começar, a população atingida terá de pensar em termos de que de seu voto depende não apenas a reconstrução da cidade, mas também, do fortalecimento de um sistema de drenagem e de proteção. A direita não investiu nelas até hoje. Por que faria agora? A esquerda sempre investiu e Manoela tinha o melhor projeto para a área, mas não foi eleita. Assim, são os cidadãos dos bairros atingidos que deverão fazer um último sacrifício, o de  votarem na esquerda, como faziam quando o PT esteve no poder. Ali a imprensa já mostrou diversos depoimentos de dirigentes de quanto foi investido na proteção da cidade nesse período. Os cidadãos daqueles bairros desistiram da esquerda no jogo de forças político por um desencanto. Mas os eleitores da direita atingidos precisam, frente a catástrofe, entregar os pontos: de que a eleição do projeto neoliberal foi uma derrota e de que o estado mínimo é uma falácia conscientes do fato claro de que, quando as coisas apertam, é ao Estado que recorrem todos, inclusive os neoliberais. A Fraport que o diga. É preciso uma força que diga “vamos, desista da direita” ou ainda “abra mão disso!”, espécie de apelo dirigido ao eleitor de direita para um reposicionamento político. 

A esquerda sempre se perguntou nas eleições recentes em que perdeu o que deve fazer ou o que deixou de fazer para a direita chegar ao poder. Parte das razões para a ascensão da direita está nas alianças que ela fez para substituir a entrada da esquerda nas periferias, com a manipulação de setores localizados nas bases sociais. Como um exército derrotado, a esquerda entregou os pontos, isto é, desistiu de um trabalho de base, mas com a enchente, um ponto de crise foi criado no imaginário da direita e com ele renova-se a esperança de que, nestas eleições, uma chance de virada eleitoral seja colocada de forma real. 

Desistir de votar em um programa neoliberal, desistir dos candidatos defensores do estado mínimo: é preciso que esta atitude seja vista como transição necessária, transformação que a enchente provoca nas vítimas atingidas. É preciso que o moralismo que virá – “mas veja só, fizemos tudo o que pudemos e vocês querem desistir de nós, os …neoliberais?”. Essa falácia que virá deve ser desmascarada com o argumento de que é preciso que o povo entenda que “desistimos ou abrimos mão de algo quando acreditamos não conseguir mais continuar como estamos”, como afirma Phillips. Não podemos minimizar a enchente como não podemos minimizar a necessidade de tomada de posição: ou deixamos de eleger governantes neoliberais “condição para que outra coisa aconteça” porque a enchente é o sinal da morte de um desejo: “eu votava na direita, no Melo, mas com a enchente, não voto mais”.  Somente na morte do desejo pela direita pode nascer um desejo pela volta da esquerda “em outras palavras, desistir é a tentativa de criar um futuro diferente”, finaliza Phillips. 

Para quem votou sempre na direita, votar na esquerda é uma espécie de sacrifício. Mostrei em A incrível história do programa que encolheu (Clube dos Autores,2021, disponível em https://abre.ai/j06V), onde analisei as propostas de Sebastião Melo em 2016 e 2020 relação as de seus concorrentes, Nelson Marchezan e Manuela d’Avila, a incrível guinada de centro à direita feita pelo candidato e atual prefeito. E mostrei que, no campo da proteção social, da proteção ambiental, a proposta de Manuela D’Avila era superior, o que as falhas do atual governo vieram a confirmar. Por que seus eleitores, ainda assim, votaram no pior programa de governo, inclusive para as cheias? Porque quiseram. Porque não leram as entrelinhas das propostas de governo. Porque estavam desencantados com a esquerda. Porque a direita teve sucesso em sua estratégia de conquista das consciências para chegada ao poder. Agora é hora de a esquerda bater firme na ideia de que é necessário que uma parte da população mude de ideia, que reconsidere ou repense os projetos de governo que pretende eleger. Ao contrário do que sugere Phillips, foi preciso que mais de 175 pessoas perdessem a vida na enchente para questionar, colocar em questão que os governantes tem a obrigação de resolver o problema das enchentes. Foi preciso uma enchente para voltar a pensar em termos de lucro ou prejuízo, o que nunca é o melhor caminho, mas enfim, que talvez faça efeito por ser a língua dominante no imaginário da capital. 

É verdade que muitos que saíram da tragédia das águas com perdas totais, de sua casa, móveis, automóveis e recordações, ainda assim expressam a gratificação da sensação de estar vivo, a alegria de ter sobrevivido, e por isso mesmo, dão um novo objetivo a sua vida. Eles não precisam serem estimulados pela leitura dos Ensaios de Montaigne, como a artista e psicanalista Marion Milner descreve em seu Uma vida própria, citada por Phillips: não é que agora, nossos sobreviventes da enchente sabem muito bem o que querem. É o contrário, sabem muito bem o que não querem: não querem vivenciar novamente uma enchente, não querem ser vítimas das águas, não querem ser vítimas da omissão dos governantes. Agora, não é o que queremos que nos faz feliz, mas justamente o que não queremos. Se o que não se quer também é um objetivo para a vida, também pode ser para a política. 

Phillips afirma que Milner fez em seu caminho a descoberta de dois tipos de atenção. A primeira, a atenção estreita, é uma forma de percepção automatizada, a voltada para o cotidiano, com um foco reduzido; a segunda é a atenção ampla, definido por um olhar ampliado, uma visão de conjuntura “olhar para algo e não querer nada daquilo”, diz Milner. Aqui, o milagre é fazer com que o desencanto político que leva a eleição da direita seja transformado em rejeição devido a catástrofe. Com a enchente, a população passa a ter uma visão completamente diferente dos governantes: é que “a atenção ampla reencanta o mundo”, diz Phillips. Ela nos ensina que é preciso procurar propostas que sejam alternativas ao universo político que está aí, a darmos atenção as propostas políticas livre de objetivos imediatos, do retorno que políticos populistas oferecem ao seu público, enfim ela é uma oportunidade de libertar cidadãos do jugo dos políticos neoliberais porque ela dá uma nova visão da política.

Nesse sentido, os políticos neoliberais só conquistaram seu poder e lugar porque souberam manipular a atenção estreita da população. Suas campanhas visavam atingir necessidades imediatas e visíveis em suas propostas, sempre com metas indefinidas envoltas em uma embalagem vistosa que massageava o ego do eleitor. Naquele momento, o cidadão não sabia de antemão o problema da possibilidade de enchente, seja porque ignorava os alertas dos cientistas ou não tinha acesso a elas; agora, ao querer que isso não aconteça mais, “querer [que] é a única coisa que podemos fazer”, como diz Phillips, abre-se no imaginário um ponto de virada. Aqui também reside nossa diferença para o autor de Sobre o Desistir: se para ele, devemos usar os dois tios de atenção, para nós é imperativo que sejamos capazes de atrair a atenção da população para os problemas mais amplos da cidade, enfatizar a atenção ampla do cidadão. Se a falha do sistema de proteção tem um valor, ela está em dizer ao cidadão que ele precisa abrir mão de algo, que precisa ampliar seu repertório político. Precisa aprender a desistir de ser de direita. A esquerda não pode perder a chance de aproveitar a enchente porque ela traz a vantagem de mostrar a contradição da direita, a sua incapacidade de proteger a população do caos climático. 

O ponto de partida para desistir de um projeto político é, na concepção de Phillips, dado pela máxima dos aforismos de Zürau, escrito por Kafka durante a os anos de 1917 e 1918, quando havia recebido o diagnóstico de tuberculose, que o mataria logo depois e que diz que “a partir de um certo ponto não é mais possível voltar atrás”. Não é possível mais voltar atrás, votar novamente nos mesmos políticos que possibilitaram que a tragédia fosse aguda. Desistir da direita não é uma tentação, é uma obrigação. É preciso voltar atrás e eleger novamente governos preocupados com o cidadão “a crise da escolha acabou; não estamos mais a procura de saídas e álibis; não somos mais seduzidos por alternativas e adiamentos”, diz Phillips. A enchente liberta do o cidadão de suas dúvidas, de sua divisão, do prazer secreto que a divisão entre esquerda e direita fazia, é hora de uma parte da cidade pensar na oportunidade de desistir de ser direita. Chegamos ao fim de algo como diz Phillips: para aqueles que votam na direita, desistir não é uma falta de coragem, algo vergonho, pois tem uma justificativa. Você reconhece os limites de uma escolha política, você não está aquém do que queria ser, não é prova de seu fracasso político. 

Veja-se o que aconteceu quando Marchezan disputou com Melo e Manuela a Prefeitura. Ali, de certa forma, ele não desistiu da campanha política? Ele não foi acusado de que perdeu porque recusou, em nome de sua crença, a agregação e não o conflito? Fiel a seus princípios neoliberais, dos quais jamais se distanciou, Marchezan escolheu a recusa pura e simples, desistiu da campanha tradicional. Preferindo os debates de pequenos grupos, diz-se que o seu problema foi o de que não absorveu nenhum dos votos dos adversários, mas ele foi capaz de, a seu modo, negar os princípios de uma política tradicional de direita, mesmo perdendo a eleição. Diz Phillips que “a tragédia nos convida a reavaliar certas versões da desistência”. É que, ensina o autor, desistir de um partido politico não significa desistir da esperança: é desistir de algo ou alguém, mas não de deixar de querer um destino. Há sempre algo que queremos, mesmo que no caso da catástrofe, que é não ter enchentes.  Não podemos abrir mão de um governo que proteja seu cidadão das intempéries, por isso precisamos de uma nova atitude em relação ao par direita-esquerda” e por isso “não podemos ceder à hesitação”, diz Phillips. Aqui, até agora, tem acontecido como nas histórias de Kafka onde a direita é aquilo que nos acostuma a promessa de algo que nunca acontece. Ou, como diz o filósofo esloveno Slavoj Zizek em Primeiro como tragédia, depois como farsa (Ed.Boitempo, 2011) é preciso dizer ao seu amigo de direita “não tema, junte-se a nós da esquerda, volte! Você já se divertiu como o anticomunismo e está perdoado por isso – está na hora de levar a vida a sério outra vez!”  

(*) Doutor em Educação/UFRGS, autor de O êxtase neoliberal (Clube dos Autores) 

***

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora