Opinião
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10 de junho de 2024
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18:43

A fotografia e o distanciamento da dor (por Bernardo Jardim Ribeiro)

Enchente de 1941 em Porto Alegre (Foto: Memória CP)
Enchente de 1941 em Porto Alegre (Foto: Memória CP)

Bernardo Jardim Ribeiro (*)

Certamente muitos gaúchos, sobretudo os porto-alegrenses, conhecem as imagens da enchente de 1941. Talvez muitos também lembrem da marcação presente na parede de uma das entradas do Mercado Público de Porto Alegre.

A marcação, feita de ferro e robustamente fixada na parede do Mercado Público, tem a função de transmitir uma informação histórica para as sucessivas gerações de quem ali transita. Quieta, sem alarde, ela aponta: a água chegou até aqui. Ela resiste ao tempo e atravessa todos esses anos sem nunca ter saído de vista dos porto-alegrenses: a água baixou e se foi, a lembrança da altura atingida no marco da capital sempre seguiu lá. A marcação registra que as águas do Guaíba chegaram a uma máxima de 4,76 metros em 1941, nível superado pelos 5,30 metros alcançados agora, em 2024.

Outra forma de lembrança desta tragédia do passado são as fotografias que ficaram para nós. Diferentemente da marcação no Mercado Público, as imagens de 41 têm um caráter quase etéreo. Até o fim do mês de abril de 2024, elas persistiam apenas como mais um item do imaginário dos cidadãos de Porto Alegre, já hoje, elas representam uma realidade que se apresenta ameaçadoramente como um “novo normal” que retornará, talvez num futuro breve. Como fotógrafo e como um cidadão atingido pela enchente, me senti compelido a fotografar o avanço do Guaíba sobre a cidade e, de uma maneira quase que natural, me familiarizei muito com as imagens de 41. Como se justamente essas imagens que eu sempre considerei como um documento histórico distanciado no tempo, imagens de uma cidade que já não existe mais, de repente tornassem uma ponte moderna, atual e direta para o passado.

Fotografia de Sioma Breitman/reprodução

É justamente essa a motivação deste ensaio: como, a partir de um distanciamento histórico, eu e qualquer uma das pessoas que sofreram esse cataclisma nos aproximamos tanto das imagens de 83 anos atrás.

O primeiro motivo para este distanciamento que experimentamos ao contemplar as fotografias de outra gente ou outra época já está indicado na origem da palavra imagem. A palavra grega da qual descende a palavra imagem é imago. Originalmente, imago significa a “imagem do morto”, significa, a imagem de algo ou alguém que não está mais presente. Similarmente, as imagens de 41 eram até recentemente imagens de algo que não existia mais. Porém a atual enchente nos obriga a percebê-las não mais como algo que já se foi, mas como  algo presente, ou como um ciclo que vai retornar e que será novamente visto.

Talvez como algo que se torne uma realidade frequente para os gaúchos. O distanciamento histórico se esvaiu. Mais importantemente, o sofrimento daquela gente ancestral tornou-se sensível, próximo, equivalente ao nosso, mesmo tantos anos mais tarde.

A fotografia tem uma característica quase inevitável e automática – alguém pode dizer até perversa e mefistofélica: ela é excelente para retratar objetivamente aquilo que está em frente à lente (que inclusive é chamada de “objetiva”), porém ao fazê-lo ela arranca a subjetividade do sujeito fotografado. Aliás, para mim este é o principal desafio que, como fotógrafo, eu gostaria de superar: como convencionar o subjetivo humano em um meio que essencialmente objetifica o sujeito. Se a subjetividade do sujeito fotografado é esmaecida ou apagada no processo fotográfico, esta pode ser uma das razões para esse distanciamento que experimentamos entre nós, observadores, e a dor dos fotografados, de que falo. Uma outra razão seria a do conceito de imago: a imagem é de algo que não
existe mais, razão para o distanciamento que é inerente às imagens.

Antes da atual enchente, as imagens de 41 impressionavam, através da linguagem fotográfica, por mostrar cenas surreais e coisas fora do lugar, cenas de uma distopia (“distúrbio do lugar”): águas no lugar das ruas e barcos no lugar dos carros, dos bondes e das carroças. Serviam como documento histórico da cidade. Já os porto-alegrenses aparecem como, nessas fotos de 41? Eu sou porto-alegrense e ao me reconhecer naqueles rostos de 1941 o que percebo é que sua humanidade passou desapercebida até agora de mim: sua humanidade aparecia todo esse tempo como uma figura acinzentada e ligeiramente fora de foco.

Fotografia de Sioma Breitman/reprodução

Em 2024 as águas voltaram para dentro de Porto Alegre: para o imago, é como se o morto tivesse sido ressuscitado. Por isso, olho agora as imagens de 1941 e consigo entender e compartilhar a dor daquela gente, mesmo que elas apareçam quase como coadjuvantes de uma cidade. Isso é algo novo para mim e acredito que para muitos e muitos conterrâneos. Sentimos a dor das pessoas de 41, pois um morto-vivo imagético retornou de dentro do Guaíba.

Eu poderia me satisfazer com a explicação que dei para mim mesmo – afinal este texto nasce como uma tentativa de organizar meus pensamentos – e parar por aqui. No entanto, devo ir ainda um pouco além e alertar para alguns motivos pelos quais esse distanciamento provavelmente retornará para os sentidos de muitos espectadores desse desastre espetacular.

A explicação do distanciamento através da imago é elucidante pois traz uma razão que é inerente à imagem. Ela reflete o passado, o que não está ali. Mas há outros processos que podem levar ao distanciamento, além da natureza da imago. Estes processos, diferentemente das imagens de 1941, se dão agora e praticamente a todo momento. Eu lembro dois deles, a seguir.

O frenesi fotográfico causado pela enchente resultou e ainda resulta em uma enorme quantidade de imagens fotográficas, muitas praticamente iguais a muitas outras, imagens que um teórico como o professor Norval Baitello Júnior, da PUC-SP, chamaria de “imagens autorreferentes”. Imagens autorreferentes são imagens que fazem referência a si próprias e a outras imagens. Seria o mais primitivo e abrangente grupo do mundo de imagens. Uma imagem autorreferente, por elucidante e significativa que seja, funciona apenas como um eco cada vez mais fraco das demais imagens anteriores a que ela faz referência.

Em consequência, ela nos extenua, às vezes até nos aborrece, e transforma o que registra ou fotografa em algo banal. Ora, os registros multitudinários das águas enchendo casas, edifícios, ruas, as fotos dos barcos navegando entre telhados e toda sorte de circunstâncias da enchente estão inevitavelmente se repetindo, se autoreferrenciando, e acabarão por nos cansar. Enquanto a imago traz uma razão para o distanciamento que é inerente à fotografia, o acúmulo das imagens autorreferenciadas, ou a segunda razão para deslocarmos nossa angústia das imagens da enchente, tem muito a ver com a contemporaneidade da nossa comunicação social, que é mediada através de imagens reproduzidas infinitamente nos meios de comunicação e nos nossos smart-phones.

O terceiro e último motivo para o distanciamento afetivo que prevejo retornará forte em breve, tem a ver com a técnica empregada na captura fotográfica e é, creio eu, o menos propenso a receber sugestões de solução em um texto reflexivo, como o que tento aqui. Digo isso pois, ao apresentar um problema técnico, uma solução técnica deveria estar ao alcance das minhas reflexões nesse texto e de uma maneira propositiva.

A fim de elucidar este último motivo, lançarei mão do exemplo de outro teórico da imagem, o americano Nicholas Mirzoeff. Este autor, ao analisar algumas obras de Monet, percebeu que aquilo que o francês pintava e tornava belo era justamente o que hoje nós reconhecemos como poluição. Isto é muito nítido na obra “nascer do sol em Le Havre”, onde o horizonte esfumaçado, densamente enevoado com uma luz amarela e onde se vê ao longe a silhueta de chaminés é justamente o que o artista transforma no belo. Ou seja, impera aqui a questão do embelezamento de uma violência. Este processo Mirzoeff chama de anestesia estética.

Este processo ocorre de maneira similar em muitas imagens de degradação ambiental, como no caso das fotografias do canadense Edward Burtynsky, assim como em outros crimes ambientais ocorridos no Brasil. Saliento o caso das imagens do rompimento da barragem de Brumadinho, uma imagem impressionante onde um morro inteiro se desfez em água e lama e cuja enxurrada destruiu completamente a cidade de Brumadinho, matando 270 pessoas. Certamente é uma imagem espetacular, tanto é que sua grandiosidade circulou pelo mundo e criou um furor nas mídias. No entanto, sua potência imagética não levou à elucidação daquele crime, não ajudou a punir os responsáveis e a aprimorar ar legislação para diminuir as chances que aquilo venha a se repetir. Esse tipo de imagem parece servir mais de exemplo do potencial de destruição do ser humano; de exemplo de tudo que pode dar errado no planejamento da exploração dos “bens” naturais pela exploração desenfreada, neoliberal e capitalista.

Hoje, quando já sabemos dos malefícios da poluição, sobretudo quando uma das consequências disso recai diretamente sobre nós porto-alegrenses, pensar em alternativas para essa linguagem é de primeira importância para nós fotógrafos. Deve haver uma opção de trabalho fotográfico que consiga evitar a anestesia estética, que valorize vítimas sem objetificá-las, ao mesmo tempo em que transmita sua dor às demais pessoas sem distanciar umas das outras. Cabe a nós fotógrafos pensar em alternativas de trabalho e publicação.

A marcação da enchente de 1941 segue na parede do Mercado Público, logo após o portão que dá para a Praça XV. É o registro de uma tragédia que foi superada por esta mais recente, que também deverá receber marcações ali e em outros lugares. As fotografias atuais serão bastante distintas e muitíssimo mais volumosas que as de 1941; resta saber que tipo de memória e de imago elas suscitarão e o quão perto elas serão capazes de nos aproximar da dor dos mortos, desabrigados e desalojados de 2024. Espero que este texto traga algumas ideias sobre como pensar essa questão.

Fotografia de Carla Lemos/SMAP Prefeitura de Porto Alegre

(*) Fotógrafo e mestre em Processos Audiovisuais pela Escola de Artes e Comunicação da Universidade de São Paulo. ([email protected]) @bernardojarrib – https://bernajribeiro.wixsite.com/fotografia 

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