Opinião
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4 de junho de 2024
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15:20

A catástrofe gaúcha e seus refugiados climáticos (por Tania Regina Antunes e Pedro Ivo de Souza Batista)

Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil
Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil

Tania Regina Maciel Antunes e Pedro Ivo de Souza Batista (*)

O ano de 2024 desafia a humanidade à reflexão sobre a relação dos humanos e suas ações com a natureza. 

Estudos científicos apontam que a última década foi a mais quente do planeta.  As queimadas, a exploração predatória, a mineração desenfreada, o desmatamento,  a queima de combustíveis fosseis, entre outros, são elementos que contribuem para  o aquecimento global e a ocorrência de eventos climáticos severos. O aumento  sucessivo e ininterrupto das emissões de gases de efeito estufa tem acelerado esse  processo.  

No recente período, diversos eventos climáticos extremos ocorreram pelo  mundo, como o avassalador terremoto em setembro de 2023 que atingiu Marrocos  alcançando 6,8 graus(escala) onde mais de 2.100 pessoas perderam a vida e 2.421  ficaram feridas; a catastrófica enchente em setembro de 2023 na Líbia resultando na  morte de mais de seis mil pessoas e 10 mil desaparecidos, o terremoto em fevereiro  de 2023 que atingiu a Turquia e a Síria culminando na morte de mais de 50 mil vidas  e milhares de pessoas feridas, inundações recordes em Hong Kong, incêndios no  Havaí, entre outros eventos de menor dimensão, mas que igualmente deixaram um  rastro de destruição e desafios humanitários, anunciando um período de reação da  natureza ao comportamento humano.  

No mesmo ínterim, em setembro de 2023, no Brasil, assistíamos impactados a  morte de dezenas de botos na Amazônia, afetados pelo calor e no outro canto, acompanhávamos incrédulos a enchente que atingia 106 municípios impactando  fortemente o vale do Taquari no Rio Grande do Sul (RS) pelo enorme número de  pessoas afetadas e cidades inteiramente devastadas. 

Oito meses depois, o Rio Grande do Sul é vítima de uma nova enchente, apesar  de alertas, como o do primeiro Relatório de Avaliação Nacional do Painel Brasileiro de  Mudanças Climáticas, elaborado por 345 cientistas datado de 2013. Essa tragédia em  curso deixa um rastro de devastação sem precedentes e assinala evento climático extremo da maior magnitude e repercussão já ocorrido no estado, no país e, possivelmente, na América Latina. 

Mais de 84% dos municípios foram fortemente atingidos pelas enchentes de  maio de 2024. Algumas cidades atingidas pela terceira vez (setembro e novembro de  2023 e maio de 2024), algumas delas inteiramente submersas e completamente devastadas. O saldo de destruição é incalculável, sendo que temos, até o momento, 154 vidas perdidas, mais de 600 mil desalojados, e centenas de feridos. 

É importante destacar que a ausência do Estado e a falta de política pública  sistêmica, ambiental e preventiva, aliado à negligência em relação aos estudos e recomendações previamente apresentados pelos órgãos competentes, como o Plano  de Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE-RS) finalizado em 2019 pela Secretaria  de Meio ambiente do Estado do RS (SEMA), o arquivamento do Plano de Prevenção  de Desastres elaborado em 2017 a pedido do próprio Governo e o não cumprimento  da implantação do Sistema Estadual de Recursos Hídricos previsto na constituição  Estadual do RS colaboraram para que a catástrofe ambiental alcançasse patamares  inimagináveis e, por consequência, resultasse no colapso social, econômico e  ambiental que resultaram na morte prematura de centenas de pessoas em franca  violação aos direitos humanos e que forçarão milhares de gaúchos a migrar para  outras regiões, porque não haverá mais condições socioambientais de permanecer  em seus locais de origem. 

A vida é um direito fundamental universalmente reconhecido, entretanto,  somente no Rio Grande do Sul, tivemos como resultado dos últimos três eventos  climáticos, até o momento, aproximadamente 200 óbitos. Estamos vivendo uma  espécie de “genocídio ambiental”, onde comunidades ribeirinhas, quilombolas, povos  originários e periféricos, são mais gravemente atingidos pela enchente avassaladora. 

Obviamente, não se desconhece que outras comunidades melhor estruturadas  também foram fortemente atingidas. 

As pessoas que enfrentam desastres ambientais, normalmente perdem os  meios de subsistência e muitas são obrigadas a deixar suas cidades, sua história,  suas relações e vínculos pessoais e mudarem para outras regiões e até mesmo de  país, em virtude dos eventos climáticos que colocam suas vidas em risco ou afetam  drasticamente sua condição de sobrevivência. 

Os impactos provocados pelos eventos climáticos extremos vão muito além, ameaçando a segurança alimentar e hídrica das comunidades atingidas e interferindo no próprio desenvolvimento econômico e social. Comprometem direitos básicos como  saneamento, moradia, saúde e educação, atentando contra a dignidade das pessoas e violando a concretização de Direitos Humanos constitucionalmente previstos.  Afetam, também, o setor de serviços com a extinção de empregos, o aniquilamento  de industrias e comércio comprometendo a sustentabilidade da região. 

As enchentes assim como a seca ou a interrupção de eventos climáticos sazonais são algumas das causas da migração em razão do clima, que conformam  uma nova categoria, a população de refugiados climáticos. 

A Convenção Quadro das Nações Unidas sobre mudança do clima definida na  Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992  (Rio 92), o Protocolo de Kyoto de 1997, a III Conferência Nacional de Meio Ambiente  sobre Mudança Climática de 2008, promovida pelo governo brasileiro, entre outras  iniciativas, já propuseram medidas para o enfrentamento do aquecimento global, além  da Agenda 2030, contudo, as medidas ainda não surtiram efeito positivo capaz de  estancar ou atenuar seus efeitos. 

Em 2025, ocorrerá a 30ª conferência preparatória à COP30 em Belém do Pará Brasil. Será uma oportunidade para que a comunidade brasileira, cientistas,  pesquisadores, gestores públicos e a comunidade internacional, sem prejuízo de  soluções de médio prazo, discutam proposições e iniciativas imediatas para conter o aquecimento global, e o momento de debater políticas e normas de acolhimento e  proteção das pessoas enquanto sujeitos de direito humanos albergados pela  Declaração Universal de Direitos Humanos. 

Urge um novo pensamento. Vontade política, investimento do poder público,  acompanhamento e regulamentação pelos Estados Nação e pelos organismos  Internacionais para, de modo articulado, frear esta situação, com foco na preservação  do meio ambiente e proteção das pessoas, dos refugiados climáticos com a preparação das comunidades para a necessária adequação diante das mudanças  climáticas em curso. 

As mudanças ambientais produzem repercussões de dimensão proeminente  sobre a vida humana constituindo-se, entre outros fatores, em uma emergência de  saúde das mais urgentes. As pessoas que sobrevivem a um desastre ambiental, uma catástrofe climática, saem absolutamente destruídas desse ambiente, também, devastado. Saem adoecidas emocional e psicologicamente.

O tratamento dispensado aos atingidos pelos eventos climáticos e aos  refugiados climáticos exige inovação, política de Estado para a atenção e cuidado das  pessoas, e de responsabilização civil e criminal dos entes públicos que não  observarem os diretrizes e recomendações de mitigação dos efeitos climáticos  recomendados pelos órgãos competentes, sendo imprescindível que os organismos  internacionais editem instrumentos de regulação, que auxiliem na implementação de  medidas de proteção. 

(*) Tania Regina Maciel Antunes é Conselheira Estadual de Direitos Humanos (CEDH/RS), Conselheira Estadual da OAB/RS e Secretária  Nacional, de Formação da ADJC. Pedro Ivo de Souza Batista é Presidente da Associação Alternativa Terrazul, membro da Coordenação Nacional do FBOMS (Fórum  Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais pelo Meio Ambiente), Conselheiro do Conama e Conselho  Nacional de Participação Social da Presidência da República

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