Opinião
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21 de maio de 2024
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07:00

Pequeno barco de madeira (Coluna da APPOA)

Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Gerson Smiech Pinho (*)

Nasci e cresci numa cidade banhada por um rio, um de seus cartões-postais. Meu avô, que era marinheiro, dedicou sua vida a trabalhar sobre as águas, no transporte de carvão das Minas de São Jerônimo, nos arredores de Porto Alegre, até Pelotas e Rio Grande. Trafegava desde o Guaíba até o outro extremo da Lagoa dos Patos, no ponto em que esta se liga com o oceano. Quando criança, ouvi muitas histórias vividas no trajeto entre o rio e a lagoa, contadas não só por meu avô, mas também por meu pai e minhas tias, que volta e meia saíam a navegar durante as férias escolares. Narrativas que se materializaram num pequeno barco de brinquedo com o qual meu avô me presenteou, esculpido por ele próprio, em madeira. Barco que não era meramente um barco, já que carregava consigo as inúmeras histórias que me foram transmitidas. Empunhando-o entre as mãos, velejava por rios, lagos e mares imaginados, indo tão longe quanto os sonhos de uma criança eram capazes de conduzir.

Impossível não reconhecer o quanto a relação de grande parte dos porto-alegrenses com o Guaíba é investida de afeto, atravessada por muitas memórias e histórias. Histórias às quais se soma hoje a mais devastadora, triste e trágica do que qualquer outra, pelo menos das ocorridas nas últimas oito décadas. O convívio com o rio, cujas margens foram substancialmente modificadas pela interferência humana, cedeu lugar ao terror, que arrastou consigo casas, vidas, sonhos e projetos. Como nos mais recônditos pesadelos da infância, observamos impotentes à tomada da cidade pelas águas. Situação que se repete em quase todos os cursos d’água espalhados pelo Rio Grande do Sul e pelas cidades que lhes são adjacentes, em grande parte delas de forma absolutamente devastadora.

Temos sido testemunhas da dor de quem precisou deixar para trás o lugar em que vive, submerso na água ou enterrado sob a lama. Seja no interior das casas, seja nos locais de trabalho, a perda dos pequenos objetos que compõem a realidade cotidiana rompe os fios que delicadamente tecemos para guiar a vida. O desaparecimento das referências que estruturam nosso dia a dia impossibilita situar-se no mundo, desfaz nossas marcas identitárias de modo a não termos mais onde nos agarrar para prosseguir.

Os objetos que estão presentes em nossas vidas, com aparência de coisas corriqueiras, em sua maioria não têm nada de banal. Grande parte deles são como o pequeno barco de madeira que me acompanhou durante a infância – condensam inúmeras histórias, carregam consigo parte de nossa identidade, compondo a rede que organiza nossa realidade corrente. Quando são subtraídos de forma violenta e traumática, como na situação atual, levam embora consigo boa parte daquilo que somos e que dá suporte e sentido às nossas vidas.

As águas não escoaram totalmente até agora. Estamos ainda mergulhados no impacto produzido pela catástrofe, atordoados, buscando encontrar palavras para designar o que resiste a ser nomeado. A longa reconstrução que temos pela frente não é somente material, mas também e fundamentalmente subjetiva. Temos histórias a resgatar, vidas a restituir para que possam retomar seu fio e seguir adiante.

A tristeza em ver o estado onde nasci e que tanto amo embaixo d’água soma-se à indignação pelo descaso com o meio-ambiente e com os dispositivos que, em alguns lugares, poderiam ter minimizado os impactos de tamanha tragédia. O conforto possível vem com a grande rede de solidariedade que se espalha por todos os cantos do estado, protagonizada principalmente pelos jovens. Bonito ver o movimento que constitui um início de resposta coletiva ao episódio social traumático que despencou sobre nossas cabeças. Traz alguma esperança de mudança na insistência com o desrespeito pela vida e pelo planeta que habitamos.

(*) Psicanalista, membro da APPOA e da equipe do Centro Lydia Coriat

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