Opinião
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13 de maio de 2024
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16:05

Pela garantia da dignidade humana dos trabalhadores atingidos pela calamidade pública no RS

Foto: Bruna Ouriques/Prefeitura de Canoas
Foto: Bruna Ouriques/Prefeitura de Canoas

Coletivo de entidades (*)

Em meio ao desastre climático que assola o Rio Grande do Sul, tem-se multiplicado o número de relatos de trabalhadore/as obrigado/as a retornar para seus trabalhos, sob a ameaça de demissão por faltas. Fato é que muitos desse/as trabalhadore/as, para além das evidentes dificuldades de locomoção que o cenário impõe, perderam seus documentos, roupas e suas casas.

Perderam afetos.

Estamos vivendo uma crise humanitária aguda, com prejuízo à integridade psicológica e física de todas as pessoas envolvidas. Não se trata apenas de uma forte chuva, que dificultou o deslocamento pela cidade, mas de uma catástrofe climática agravada por uma gestão de destruição ambiental e ausência de políticas de contenção contra enchentes.

Nos abrigos espalhados por toda a região afetada, os registros são semelhantes: trabalhadores e trabalhadoras estão sendo ameaçados/as de despedida, caso não retornem imediatamente para seus empregos. Na mídia, os empregadores contam história diversa: para atender as necessidades da população, é fundamental que seus serviços funcionem.

Em momento nenhum, porém, questiona-se a condição de retorno dessas pessoas. Como voltar ao emprego, se não há luz ou água potável em casa, se não há casa, pois suas residências estão debaixo d’água? Como trabalhar, se familiares e amigos estão, a todo momento, necessitando de resgate? Se essas pessoas perderam parentes, roupas, documentos?

O desconto em razão de falta ou a ameaça de despedida não são apenas medidas ilícitas; revelam falta de humanidade e empatia, em um cenário que assemelha-se a uma situação de guerra. Além disso, contrariam a ordem jurídica. Afinal, nossa Constituição é fundada na preservação da dignidade humana. A empresa deve atender sua função social e a relação de emprego deve ser protegida contra a despedida injustificada.

Em discursos de “atendimento à população”, mascara-se o interesse em manter a mais-valia e a exploração imediata do trabalho. Revela-se, ainda, a lógica do aproveitamento do desespero humano, para a obtenção de vantagens econômicas. O “gesto altruísta das empresas”, como grandes redes de supermercado, que não param de funcionar em meio ao caos, nada mais é do que uma das tantas fábulas inventadas pelo capitalismo, para justificar a exploração a qualquer custo.

Unida frente ao desastre, a classe trabalhadora demonstra toda a sua força e solidariedade, seja por meio de doações, trabalho voluntário ou resgate de vítimas. É fundamental que em um momento como esse, a Justiça do Trabalho e o Governo também se posicionem, seja através de campanha pública, seja por meio de norma que concretamente impeça descontos de salário ou despedida, durante o período de calamidade climática, que certamente perdurará pelos próximos meses em nosso estado e, muito provavelmente, não será o último.

Impor à classe trabalhadora ainda mais penalização, diante de um quadro de tragédia humanitária como o Rio Grande do Sul vem enfrentando, seja impondo exibição de atestado, descontando salário ou despedindo, é a antítese do que significa viver em um estado democrático de direito. Qualifica-se como ato ilícito, nos termos do artigo 187 do Código Civil e do artigo 9o da CLT.

Os direitos trabalhistas são direitos humanos fundamentais, pois é com o salário que se obtém acesso ao alimento, ao remédio, à roupa ou à moradia. Não é razoável que a lógica do capital se sobreponha a isso. Essas pessoas não estão brincando, estão lutando pela vida e chorando suas perdas e seus mortos.

Nós, trabalhadora/es, estudantes, pessoas que atuamos na Justiça do Trabalho, cidadãs e cidadãos, temos o dever de defender os direitos da classe trabalhadora que, em realidade, é o direito de todos e todas a vivermos em uma sociedade melhor. Por isso, conclamamos à adoção de decisões que efetivem a proteção constitucional e de medidas legislativas que dêem conta do momento dramático que estamos enfrentando. Em razão disso, compreendendo que a Lei Nº 14.437, de 15 de Agosto de 2022, não atende a necessidade de proteção em momento de crise aguda como o que enfrentamos, reivindicamos ao Governo Federal a edição, em regime de urgência de decreto que altere a Consolidação das Leis do Trabalho, nos seguintes termos, acrescentando aos respectivos artigos:

Art. 462:

§ 4º- É vedado, ainda, o desconto de salário, independentemente da apresentação de atestado, pela ausência ao trabalho em razão de situação de emergência ou calamidade pública na região em que o/a trabalhador/a mora ou trabalha, pelo tempo necessário à normalização das condições de existência;

Art. 473:

XIII. pelo tempo que se fizer necessário, enquanto durar os efeitos da situação de emergência ou calamidade pública na região em que mora ou na qual trabalha;

Art. 477C:

É vedada a dispensa de trabalhador/a enquanto vigorar a decretação do estado emergência ou de calamidade pública e, após a sua cessação, pelo período de pelo menos seis meses.

A VIDA DEVE ESTAR ACIMA DO LUCRO! O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO DEVE GARANTIR A PROTEÇÃO DOSTRABALHADORES!

(*) Assinam esta Nota Pública as seguintes entidades:

GATRA- Grupo de Assessoria Trabalhista da UFRGS.
SAJU- Serviço de Assessoria Jurídica Universitária da UFRGS.
CUT RS- Central Única dos Trabalhadores do Rio Grande do Sul.
CTB RS- Central dos Trabalhadores Brasileiros do Rio Grande do Sul.
ABRAT- Associação Brasileira dos Advogados Trabalhistas.
AGETRA- Associação Gaúcha dos Advogados Trabalhistas.
RENAP- Rede Nacional de Advogados Populares.
THEMIS- Gênero, Justiça e Direitos Humanos.
DCE UFRGS- Diretório Central dos Estudantes da UFRGS.
CAAR- Centro Acadêmico André da Rocha (Faculdade de Direito- UFRGS).
GPTC UFRGS- Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital da UFRGS.
ITTS- Instituto Trabalho e Transformação Social.
ADJC- Associação Nacional de Advogados e Advogadas pela Democracia, Justiça e Cidadania.
ABJD- Associação Brasileira de Juristas pela Democracia.
FÓRUM JUSTIÇA- Fórum Justiça do Rio Grande do Sul

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