Opinião
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13 de maio de 2024
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16:45

O porto seguro a buscar (por Ana Carolina Rios Simoni)

(Foto: Lauro Alves/Secom)
(Foto: Lauro Alves/Secom)

Ana Carolina Rios Simoni (*)

No centro da catástrofe climática no Rio Grande do Sul, que já afeta 447 dos 497 municípios do estado, em que 145 pessoas perderam a vida, 132 estão desaparecidas, 806 se feriram, 81.200 estão em abrigos, 538.743 desalojadas, 2.115.703 afetadas, 76.399 pessoas e 10.555 animais foram resgatados [1], cresce uma pauta que, na verdade, é uma velha conhecida. Basta uma breve zapeada pelas redes sociais e conteúdos jornalísticos para acessar um debate que, na maioria das vezes, tem situado em lados opostos o trabalho voluntário e a ação do Estado, numa disputa discursiva sobre quem realmente está trabalhando e salvando vidas nos cenários dolorosos das enchentes no RS. 

Essa dicotomização, nossa velha conhecida, tem ganhado força em relatos e manifestações que se multiplicam não só pelas redes, mas nas conversas cotidianas dos brasileiros nesses dias de angústia e desespero. “O povo pelo povo”, “não tem governo se não fossem os voluntários”, “se não fossem os empresários voluntários, o RS estaria muito pior” são algumas das suas formas de expressão. 

Grandes empresários, influenciadores digitais, políticos e outras lideranças da sociedade protagonizam o debate em pauta. Uns atuando para contribuir com as ações de resgate e ajuda humanitária; outros alertando a população sobre o descaso dos governantes com a crise climática global que está na raiz dos eventos extremos que vivenciamos; há também os negacionistas climáticos e, sem sombra de dúvida, aqueles que, numa espécie de corrida por demonstrar a ineficiência do serviço público, buscam deslegitimar sua razão de existência. Nestes contextos, reiteradamente, o trabalho voluntário tem aparecido como resposta derradeira, um último porto seguro a recorrer. 

É fato que milhares são os resgates de pessoas feitos pela própria comunidade, com veículos aquáticos particulares e, frequentemente, com participação de muitos dos que tiveram suas residências atingidas e permanecem nos locais para auxiliar os demais. A iniciativa de pessoas que não integram serviços públicos se sobressai nos abrigos improvisados, no fornecimento de alimentação aos afetados e voluntários, nas campanhas de arrecadação de donativos, no acolhimento às pessoas impactadas. Incessantemente, vemos estas cenas nas redes sociais e na televisão e sentimos desde alívio e esperança, com a força de organização das coletividades, à revolta e raiva contra os responsáveis pelas circunstâncias de devastação em que nos encontramos. 

Também assistimos o esforço de integração interfederativa para fornecer uma resposta do poder público, ainda que tardia, à situação. Servidores municipais, estaduais e federais da Defesa Civil, Segurança Pública, Forças Armadas, Saúde, Assistência Social, entre outros setores, se somam ao contingente de anônimos que atuam na linha de frente dos resgates, acolhimentos, logística de alimentação e de outros itens de primeira necessidade e, em alguns casos, já nas ações de reconstrução. Vale lembrar que muitos destes servidores também foram atingidos pelas enchentes ou têm familiares e pessoas próximas atingidas. Outros tantos, em especial dos serviços de saúde e assistência social, têm contratos precarizados e se esforçam por responder às necessidades da população, ainda que suas condições de trabalho nos serviços terceirizados que integram sejam sofríveis. 

Digo “ainda que tardia”, uma vez que historicamente o poder público tem chegado nos territórios apenas no momento de gerenciamento do desastre e não vem atuando de forma efetiva na gestão de riscos, ou seja, não tem se ocupado da redução de risco de desastres, restringindo-se à resposta pontual de socorro na ocasião dos eventos e à reconstrução das áreas afetadas. Sem falar na histórica omissão frente à implementação das políticas ambientais e climáticas reivindicadas, há muito, pelos povos originários de nosso país e por inúmeros pesquisadores e ativistas da área. 

Contudo, a serviço de que está a dicotomização entre a ação voluntária da população e a atuação do poder público? A quem interessa o discurso de que o povo não precisa de políticas públicas? Com que finalidade se fomenta o imaginário de que é possível substituir a função do Estado com o voluntariado? 

Essa lógica é nossa velha conhecida. Ela está no “DNA político” de muitos governantes que privatizam serviços essenciais, desmontam políticas públicas e governam para o lucro de poucos. É preciso estar alerta a essa ameaça cotidiana aos nossos direitos, que se nutre da fragilidade da população em momentos como o que estamos vivendo. Na prática, vai se gestando um modo de conceber a vida coletiva, pelo qual se incrementa o individualismo, por um lado, e o desamparo dos mais vulneráveis, por outro. Ainda que se utilizem palavras de ordem como “o povo pelo povo”, o que ocorre é a tomada do Estado por interesses privados, sob o argumento do “faça por você mesmo”, “seja um heroi”. 

Lembremos de uma experiência recente. Na pandemia de Covid 19, o Sistema Único de Saúde cumpriu um papel crucial na atenção à população, assim como foi fundamental a organização comunitária para cuidarmos uns dos outros, acolhendo as orientações dos profissionais de saúde. Quando não fomos capazes de conjugar estes esforços, seja pelo sucateamento dos serviços, perpetuado pelas políticas de Estado mínimo, seja pela desmobilização das estratégias de prevenção coletiva, aí incluída a demora na compra de vacinas, falhamos. Muitos lucraram com o negacionismo genocida. 

O SUS é resultado da organização coletiva do povo, que lutou pela democracia, pela Constituição, pela Reforma Sanitária, pela saúde como direito de todos e dever do Estado. O SUS na pandemia foi o Estado fazendo sua função, apesar do negacionismo dos seus governantes. Uma política pública de Saúde não se sustenta com voluntariado, mas também não existe sem a participação popular e articulação comunitária. Por que uma Política de Proteção e Defesa Civil deveria? 

É falsa a dicotomia entre a ação solidária da população e a atuação do Estado. Alguns dos que a propagam podem estar buscando um porto seguro, mas não encontrarão senão novos desastres. A organização coletiva das comunidades frente às suas realidades e demandas é intrínseca à construção de políticas públicas cidadãs, em que o Estado não terceiriza suas responsabilidades e funções fundamentais. Recusemos a armadilha de que nosso voluntariado possa substituí-las e nos mobilizemos para que as ações de solidariedade que nos unem neste momento de dor nos possibilitem a aprendizagem da organização coletiva para reivindicar políticas de Estado resistentes às investidas dos gestores da morte. O porto seguro a buscar só será alcançado com a luta coletiva pelos nossos direitos. 

[1] Dados fornecidos pela Defesa Civil do RS em 12 de maio de 2024, às 20h.

Ana Carolina Rios Simoni, psicóloga, doutora em Educação pela UFRGS, docente do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, pesquisadora membro do grupo de pesquisa Modos de Subjetivação, Políticas Públicas e Contextos de Vulnerabilidade.

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