Opinião
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11 de maio de 2024
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13:57

O orgânico como incapacidade de governar da Prefeitura de Porto Alegre (por Rafael Kruter Flôres)

Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Rafael Kruter Flôres (*)

Não, este não é mais um texto que resgata o histórico de omissões e inações dos governos municipais, estadual e federal na catástrofe que estamos vivendo no Rio Grande do Sul. Esse histórico está sendo registrado em diversos textos muito esclarecedores já publicados [1], e em outros que estão por vir.

Sim, este é mais um texto que busca apontar responsabilidades para a catástrofe. Contra o argumento de que ‘não é hora de apontar culpados’, busca apontar não culpados, mas responsáveis, com a premissa de que não há hora certa ou errada para isso. Apontar responsabilidades pode ser parte do processo de planejamento estratégico que deve, como ensinou Carlos Matus, a partir da experiência prática, contribuir na identificação de uma rede de causas que possam levar a identificar erros e problemas e gerar aprendizagem coletiva e institucional. No limite, é salvar vidas.

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Nesse texto, quero refletir sobre algo que revela a incapacidade de governar da Prefeitura de Porto Alegre, e tem aparecido em seus pronunciamentos públicos nos últimos dias. Me refiro ao uso do conceito de organicidade. Em um deles, comentando sobre o abastecimento de mercadorias nos supermercados de Porto Alegre, o Vice-Prefeito afirmou:

Importante também que não é só a Prefeitura que tá emprenhada em garantir esse abastecimento. Todos os supermercados, todos os produtores de comida e de bebida tão trabalhando nesse momento com seus engenheiros, com seus técnicos de logística, com as suas equipes para encontrar as melhores rotas para fazer esse abastecimento. É um processo muito orgânico de buscar garantir (grifos meus).

Em outra declaração, disse o seguinte sobre a ação de voluntários que resgatam as vítimas com embarcações:

Eu não sei precisar o número Prefeito, mas seguramente nós devemos ter uns quinhentos barcos na água, se não mais, eu não sei precisar, é um número impressionante. A AJ Renner virou uma hidrovia, outras avenidas ali viraram hidrovias a ponto de se precisar organizar o fluxo para os barcos que estão indo irem por um lado e os barcos que estão vindo irem pelo outro. É um sistema orgânico que foi se desenvolvendo (grifos meus).

O uso da expressão ‘orgânico’, seja para processo ou para sistema, parece ser usado com uma conotação positiva pelo Vice-Prefeito, no sentido de algo que se constrói colaborativamente, na base da solidariedade e da parceria, sem imposições burocráticas ou autoritárias. É muito compreensível que, em uma situação inusitada de crise, o sistema orgânico vá se desenvolvendo de forma processual, descentralizada, improvisada e espontânea. São pessoas salvando vidas, suas e de outras, do jeito que é possível. No entanto, esse processo é parte de um processo maior que revela ausência de governo. É aí que reside a irresponsabilidade de alguém que assumiu o lugar de autoridade e, portanto, em uma situação de crise, deveria criar sistemas e processos de forma centralizada a partir de planos de contingência. Ou seja, deveria governar.

Na teoria administrativa, a metáfora do modelo orgânico de gestão remete aos anos 1960, quando os pesquisadores Tom Burns e George Stalker, na busca por compreender e explicar a forma pela qual organizações inovam, criaram dois modelos nos extremos de um contínuo, o modelo mecânico e o orgânico. O primeiro seria aquele caracterizado pela forma clássica da burocracia: divisão funcional rígida, clara hierarquia de mando e subordinação, coordenação centralizada, comunicação e interação vertical. Já o modelo orgânico seria caracterizado por ajuste contínuo e redefinição de tarefas, mudança, ambiente que favorece criatividade e inovação, administração descentralizada e ajustes mútuos no lugar de controles rígidos, comunicação e interação de acordo com necessidades do processo. Nessa perspectiva, claro está que o modelo orgânico é superior ao mecânico no que se refere à possibilidade de gerar inovação.

É verdade que essa proposição dualista e dicotômica pouco ajuda em processos de crise social como é a catástrofe, já que foi concebida para compreender processos de inovação na gestão empresarial. No entanto, pode ajudar sim a compreender o modo pelo qual pensa e age (ou não age) a atual Prefeitura de Porto Alegre.

A dicotomia do mecânico/orgânico está na base da desvalorização social do público, do governo, do planejamento e da política, uma forma de pensar que tem conquistado corações e mentes na sociedade do capitalismo neoliberal. Tais elementos deveriam, nessa perspectiva, ser substituídos pelas formas pretensamente superiores de organização da gestão privada, empresarial, supostamente neutra. O mecânico e burocrático é atrasado; o orgânico e inovador é avançado. Essa conclusão é problemática por pelo menos duas razões. A primeira é que está errada: as organizações criam estruturas diferentes de acordo com aquilo que se propõem a fazer. Isso é inclusive uma das conclusões do estudo pioneiro de Burns e Stalker.

A segunda é que ela opera uma ideologia e, como tal, cumpre uma função na defesa de interesses específicos. Trata-se da manifestação daquilo que entendemos por gerencialismo: a adoção dos parâmetros da gestão empresarial em todos os aspectos da vida social, já que seus critérios de eficiência seriam superiores àqueles oferecidos pela burocracia convencional e outras formas de organizar. Essa operação, já se sabe, é repleta de manobras discursivas e ideológicas que ocultam interesses privados. Não é por acaso que a atual Prefeitura sucateou o Departamento Municipal de Água e Esgoto (DMAE) para privatizá-lo sem nenhuma justificativa racional que não seja aquela que não é declarada: transformar o abastecimento de Porto Alegre em um bom negócio para alguém.

A Prefeitura, assim, tem revelado a total ausência de planos de contingência e habilidades institucionais capazes de orientar ações com a rapidez e eficácia que atribui à ação improvisada e desesperada do povo na tentativa de salvar vidas, como se a responsabilidade fosse igual para todos. Também em uma entrevista coletiva, o Prefeito de Porto Alegre, ao mesmo tempo em que tenta dividir a responsabilidade que assumiu enquanto governante com todos, volta ao discurso do empreendedorismo e da inovação, como se a catástrofe fosse uma oportunidade para fazer diferente.

Essa cidade nasceu com os açorianos, se somou a dezenas de etnias que se formou num povo empreendedor, acolhedor, inovador. E a cidade, nesses últimos dois anos, superou a crise humanitária da Covid e vinha num nível de felicidade das pessoas, do uso dos espaços públicos, da cultura…e vem, e recai sobre nós, sobre os nossos ombros, de todos nós, todos têm responsabilidade, e nós só temos um caminho a seguir, que esta lealdade entre nós, sociedade e governo, ela continue, porque teremos dias mais difíceis do que esses. Com esse mutirão de solidariedade estamos nos acolhendo. O mais difícil é devolver, reconstruir vidas dessas pessoas que agora têm que voltar para algum lugar. Portanto, a cidade não vai se reerguer só com o poder público, por mais que tenha esforço. Se nós agirmos também, no tradicional na gestão, não ergue essa cidade. Nós temos que fazer muitas coisas diferentes do que nós fizemos até agora (grifos meus).

Ora, diante de um governo que se exime das suas responsabilidades, não é por acaso que, de um lado, grupos e movimentos de esquerda têm usado o lema ‘’só o povo salva o povo”; e, de outro, grupos à direita têm usado a catástrofe para reforçar sua doutrina de que o Estado não serve para nada.

De novo recorro a Carlos Matus, para quem “a superação da visão tradicional requer uma mudança de postura intelectual e governamental, compreender que não cabe ao planejamento predizer o futuro, mas buscar viabilidade para criar o futuro, como uma ferramenta que amplia o arco de possibilidades humanas, um instrumento de liberdade”. Deixar que o povo, as empresas, os voluntários, os coletivos, os ONGs etc. salvem suas vidas e a de seus entes queridos, seus animais e seus pertences na base de ‘sistemas orgânicos que vão se desenvolvendo’ é, mais uma vez, assumir a sua própria incapacidade de planejar e, portanto, de governar. Muitos perderam e ainda vão perder com isso, mas alguém vai ganhar. Quem será?

Nota:

[1] A esse respeito recomendo a leitura dos seguintes textos:

Sobre a emergência climática e ambiental no RS (por Rualdo Menegat)

Presos em sua bolha opaca, governantes negligenciaram as previsões sobre a tragédia no RS

O negacionismo climático de Eduardo Leite

(*) Docente e pesquisador da Escola de Administração da UFRGS

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