Opinião
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26 de maio de 2024
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14:36

O desafio da reconstrução do RS (por Luiz Marques)

Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil
Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil

Luiz Marques (*)

Os governantes neoliberais acreditam que, ao minimizar os predicados ambientalistas da legislação sobre o desenvolvimento urbano, aceleram o crescimento econômico (isto é, a acumulação do capital). Neste sentido, o governador do Rio Grande do Sul e o prefeito de Porto Alegre acabaram por produzir a tempestade perfeita na crise climática. O estado gaúcho e a União vão gastar muitos bilhões por causa do erro de avaliação, fruto das convicções ideológicas de ambos. O desrespeito pelo meio ambiente e a falta de noção sobre os ganhos da sociabilidade, voltada ao bem comum, levaram à catástrofe que já conta com 165 mortos e 64 desaparecidos, sem mencionar as perdas patrimoniais das famílias e das empresas, e o desaparecimento de cidades devastadas pelas águas.

O geógrafo David Harvey, em Os sentidos do mundo: Textos essenciais, aponta o problema das políticas urbanas aplicadas pelo receituário do neoliberalismo. Como vimos na teoria e na prática dos governos pós-impeachment (Temer e Bolsonaro), no Brasil, houve o cancelamento de qualquer medida de redistribuição de renda para os bairros, cidades e regiões menos favorecidas com base na crença de que, em vez disso, os recursos deveriam ser endereçados “para os polos empreendedoriais dinâmicos”. O equivalente nas relações de trabalho encontra-se na Lei das Terceirizações. Entregar a cidade aos incorporadores e operadores financeiros especulativos resultaria no benefício de todos. A aliança com as construtoras assenta-se no entendimento de quanto mais desigualdade melhor.

Relatórios do Banco Mundial, desde a década de 1980, assinalam que se os chineses tivessem permitido o uso do solo de suas cidades para forças do livre mercado teria crescido mais. Eduardo Leite e Sebastião Melo se fiam na balela, como mostra a contratação da consultoria Alvarez & Marsal para a reconstrução do RS e da metrópole porto-alegrense. O leitor já adivinhou o nome da consultoria que prestou serviços à cidade de New Orleans e, agora, se apresenta aos colonizados.

A disputa no futuro próximo se dará para canalizar os recursos federais até as classes privilegiadas como aconteceu na cidade norte-americana, onde escolas foram fechadas, milhares de professores foram demitidos e mais de 20% da população foi expulsa para freguesias distantes. O secretário Extraordinário para a Reconstrução Pedro Capeluppi, indicado pela administração estadual, já fala em repassar escolas e rodovias à iniciativa privada através do Projeto de Parceria Privada (PPP), aprovado ano passado na Assembleia Legislativa para “qualificação da infraestrutura escolar” em quinze municípios, o que perfaz cerca de 2 mil escolas. “Os projetos que já eram muito importantes, passaram a ser mais importantes ainda”. A aposta neoliberal será dobrada no pago sul-riograndense. A irracionalidade, aliada à incapacidade de compreender as razões do desastre, não tem limites.

Na cabeça modernizadora dos políticos neoliberais, o progresso sob signo do capitalismo pode se dar ao mesmo tempo que a maioria da população e o meio ambiente vão de mal a pior. O resultado trágico não muda a percepção cognitiva dos que dedicam mesuras às finanças e o agronegócio. Por isso, a preocupação de se desresponsabilizar com os acontecimentos que despertam uma comoção em nível nacional e internacional, com as ações generalizadas de solidariedade. É preciso que o cataclismo seja encarado como um episódio isolado no céu cor de rosa das ilusões. Os apaixonados pela própria retórica chegam a falar em “guerra”. Ora, só se for contra a natureza e o povo antes, durante e depois como prenunciam as novas privatizações dos equipamentos públicos e das terras.

Uma luta de classes começa entre os interesses representados pelo governador e o prefeito, de um lado e, de outro, o ministro Extraordinário Paulo Pimenta, indicado pelo presidente Lula para concentrar os esforços do governo federal no trabalho de reconstrução. Que o espírito solidário que floresce se transforme em políticas públicas sustentáveis, e as autoridades pensem no bem-estar da sociedade. Não é hora de insistir na visão que tem se revelado calamitosa para a cidade e o estado.

(*) Docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura no Rio Grande do Sul

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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