Opinião
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28 de maio de 2024
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15:15

Moda, subjetividade e desastre ambiental (por Helena Soares)

Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Helena Soares (*)

Falar sobre a responsabilidade que a moda tem no atual desastre ecológico aqui no sul talvez pareça algo fútil, inútil ou, no mínimo, estranho. Uma psicanalista discorrer sobre isso pode ser até perigoso. Mas que risco nos falta correr para valorar aquilo que são produções da cultura, logo do humano e da subjetividade? Perdemos quase tudo; então não consigo ver oportunidade mais urgente para enfrentar notícias falsas e o risco de uma reconstrução desastrosa do que uma escrita-testemunho.

Nasci e me criei na capital gaúcha. Vi os modelos econômicos federais impulsionarem a indústria têxtil e com eles uma mudança radical nas práticas do vestir. Se antes usávamos roupas herdadas, doadas e transmitidas entre parentes e conhecido, o consumo direto das lojas tornou-se possível para grande parte da população. Com essa mudança veio junto o advento dos cartões de créditos de grandes loja de fast fashion. 

O sul do país possui uma característica singular no que tange o clima que produz efeitos na moda: ainda que haja locais que façam frio em nosso país, é nos três estados do sul que temos um inverno definido, ou seja, lugares em que os guarda-roupas precisam mudar para que nossos corpos estejam abrigados. Não é incomum a prática, para quem possui guarda-roupas, de colocar roupas de inverno no espaço superior do armário quando o verão chega e, quando o calor dá uma trégua, de “baixar” as roupas de volta para uso cotidiano. 

Desde este lugar geopolítico vi também a ascensão e o declínio de políticas públicas que melhoram a mobilidade urbana, a educação e a cultura de minha aldeia portoalegrense. Cidade que sediou o Fórum Social Mundial e que teve a maior empresa pública de transporte (Carris) do Brasil, é a mesma que vem desmontando o plano de carreira de professores municipais, dentre outras ações cujo objetivo é a precarização do aparelho do Estado. 

Do interior do Estado posso falar menos. Mas estudei na escola nos anos 1980 e 1990 que daqui saíram grandes estadistas; já na idade adulta entendi que a Guerra que está no hino, na verdade foi perdida, e que sacrificou corpos negros – os Lanceiros Negros – em prol de uma burguesia ruralista. Do interior sei também que há décadas reproduz o assistencialismo sazonal no que denominamos de Campanha do Agasalho. No passado eram ligadas aos gabinetes de primeira-dama dos municípios e do governo estadual, mas com a expansão do consumo de moda parece que primeiro vento que sopra do sul (antes da recente enchente que assola grande parte da população gaúcha) impulsiona cada empresa/organização a recolher roupas preteridas a corpos que supostamente nada tem para vestir. 

Aqui também é o Estado que expandiu o mercado de brechós. Expandiu tanto que franquias nacionais abriram os olhos e se instalaram no Estado e surfam na onda de uma suposta mudança de lógica de consumo. Suposta porque infelizmente seguimos escutando que roupa de brechó é roupa de morto; e mais que expandido, pode-se dizer que um mercado que se solidificou com negócios para muitos bolsos e gostos. No RS temos um número grande de psicólogos, psicanalistas, assistentes sociais e designers de moda que pouco dialogam na direção de investigar a relação da moda com a produção de subjetividade. Muitos querem saber e não sabem bem como considerar essas intersecções, outros se deparam com demandas com sensação de impotência, mas pouco (quase nada) se troca sobre o assunto. 

Enquanto são depositados lixos têxteis no vizinho Deserto do Atacama, contêiners de roupas vindos do norte-global chegam a diversas instituições gaúchas. E infelizmente vemos a classe média fazer a reprodução desta lógica de consumo descartável de moda que serão doados no próximo inverno. 

Não se trata de buscar anjos e demônios nesse cenário tão desolador, mas como pensar uma escuta que considere poder se angustiar, e atravessar o desespero que nos assola. 

Então o inverno metafórico chega (ainda estamos no outono): a chuva não cessa e a demanda por agasalho é real aos desabrigados e desalojados pelas enchentes. E é difícil fazer esta escrita desde a posição psicanalítica – ou mesmo uma leitura da cultura com o mesmo olhar clínico – enquanto o laço social sustentado por palavras que nem sempre se abrem imageticamente, e imagens nem sempre são lidas. 

Quando o Rio Doce morreu em decorrência das ações exploratórias de empresas que não tinham a fiscalização necessárias de suas ações eu pensava que a memória de aldeias – das matas, das fazendas e das cidades – corriam risco de se perderem. E essa é uma inquietação que ocupa esta cidadã brasileira e a psicanalista. Se Freud se ocupou em escrever que a pulsão de vida em uma sociedade neurótica traz registros que de alguma forma há de se transmitir às outras gerações (olha aí a transmissão das roupas!), disse também que a perversão habita a mesma sociedade e que rompe com a demanda de transmissão. Frantz Fanon, psiquiatra e psicanalista martinicano sublinhou que a invenção da categoria raça é feita por brancos, que a marcação pela pele é algo que prejudica a todos e que a superação desta perversa invenção poderia advir a liberdade. E adivinhem quem Fanon inspirou: nosso Patrono da educação Paulo Freire.

Fica a pergunta sobre qual liberdade tem uma sociedade que não consegue/pode/quer se pensar a partir daquilo que os atravessa radicalmente: todos e todas estamos vestidos. De farrapos, inscrições na pele ou de casacos fleece, em alguma medida temos a moda como elementos cultural. Mas não temos somente uma moda, mas muitas. 

Se o norte-global compra nossa matéria-prima de melhor qualidade sem dar suporte de fiscalização para sua extração, é este espaço geopolítico que também sofrerá com as consequências reais e subjetivas que o Planeta vem gritando. A lógica é simples: se seguirmos reproduzindo a moda norte-centrada de consumo com objetivo de descarte, o Planeta nos devolve o lixo em forma de desastres climáticos. As enchentes que destruíram cidades inteiras no Estado do Rio Grande do Sul são tragédias construídas. Os avisos da Defesa Civil e de técnicos de diferentes instituições deixaram governantes a par. Outros desastres ambientais já vêm ocorrendo há décadas nos avisando que o laço social que escolhemos produzir e que nos produz falha em não dar espaço para a memória dos objetos que fazemos e que nos são transmitidos. 

O Brasil é um país que mata indiscriminadamente defensores dos Direitos Humanos. De Chico Mendes a Mãe Bernadete a memória daquilo que poderíamos ter sido parece bem mais distante do que um lugar onde Políticas Públicas considerem que a roupa é um elemento cultural. Yes, nós temos bananas, mas elas nem são brasileiras. Já o Caju, cantado pelo carnaval alegre da Mocidade Independente de Padre Miguel em 2024 é brasileiríssimo. Aqui no Rio Grande do Sul temos uma fruta que volta e meia corre risco de extinção: o butiá. A ela se ligou uma expressão regional que expressa espanto: ‘me caiu os butiás do bolso’. Quantos riscos o butiá suportará e quanto coração ainda temos para tanto susto? Roupa com bolsos nós temos de sobra*, mas nossos netos talvez só conheçam os farrapos delas. Sem butiás. 

Sem demonizar ou canonizar as ações que vem fornecendo agasalho a quem mais precisa neste desastre, é preciso lembrar que doação não é lixo e que felizmente este tema vem à tona. Cada álbum de fotografias perdido em destroços coberto por lama cabe em seus donos como uma roupa dentro do corpo: são identidades, histórias, narrativas que podem ser transmitidas de forma oral e escritas. Sim, seus corpos precisam estar protegidos para isto, mas de roupas em bom estado, doadas com cuidado e generosidade. 

No mais fico a torcida por escutas futuras da reconstrução do mercado de brechós. Pode uma psicanalista imaginar futuros? Quem sabe talvez emprestando bolsos e butiás do “meu” Brechó… 

* No fechamento deste texto os Correios anunciaram que não estão mais coletando roupas em suas agências para envio às vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul. 

(*) Helena Soares, psicanalista, doutora em psicologia social, criadora do Brechó de Troca

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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