Opinião
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27 de maio de 2024
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13:07

Emergência climática e quatro inquietações sobre o “novo normal” (por GEPOL)

Bairro Humaitá, na Zona Norte de Porto Alegre. Foto: Isabelle Rieger/Sul21)
Bairro Humaitá, na Zona Norte de Porto Alegre. Foto: Isabelle Rieger/Sul21)

(*) Grupo de Estudos em Economia Política e Ecologia Política da Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS

O estado do Rio Grande do Sul se encontra devastado por uma manifestação concreta da emergência climática. Em praticamente todos os telejornais, comentaristas e especialistas afirmam que é necessário se acostumar com um drama que não é exclusivo dos gaúchos, mas experimentado por cada vez mais pessoas ao redor do planeta. Diz-se que é o “novo normal” do mundo em que vivemos. Gostaríamos de compartilhar quatro inquietações a respeito desse “novo normal”.

Apesar da queda do céu o “novo normal” não caiu do céu

A emergência climática que atravessamos não caiu de paraquedas, não é um raio em dia de céu azul e tampouco se trata de um castigo divino – como profanam certos negacionistas e alguns inocentes que se deixam por estes engambelar. Ela foi construída ao longo de muitas décadas. E não resta dúvida de que é fruto do desenvolvimento de um modelo de civilização que logrou avançar espetacularmente as suas forças produtivas, mas a um ponto em que se tornaram tão destrutivas quanto produtivas. Portanto, a compreensão da emergência climática passa por reconhecer que – diferentemente das demais espécies animais – os seres humanos são capazes de transformar a natureza da qual fazem parte. E que esta natureza transformada pela ação humana não é mera fonte de recursos naturais, mas um sistema de ecossistemas com funcionamento próprio chamado biosfera; o ambiente do globo terrestre em que a vida é possível. 

Desde a Revolução Industrial, o grau de destruição de ecossistemas terrestres e marinhos é cada vez maior, mais profundo e traz repercussões cada vez significativas no funcionamento da biosfera – e de maneira mais ampla no Sistema Terra. É justamente por isso que atualmente se fala em Antropoceno, ou seja, na era das mudanças geológicas provocadas pela ação humana. Ponto que requer uma ressalva: se as alterações no funcionamento do Sistema Terra são mais significativas desde a Revolução Industrial, talvez o conceito mais apropriado não seja o de Antropoceno, mas o de Capitaloceno. Basta ver que em uma aldeia indígena não se destrói o ecossistema ao ponto de comprometer-se decisivamente o seu funcionamento – a menos que esteja invadida por garimpeiros, grileiros e congêneres. Aliás, a ideia da “queda do céu” é de David Kopenawa, um xamã yanomami que nos presenteou com essa brilhante figura de linguagem ao se referir a ação de garimpeiros que – em corrida ensandecida pelo ouro –   destroem a pilastra que sustenta o céu, que desaba sobre suas cabeças e de todas as demais formas de existência.

 A queda do céu é a possível destruição das condições de vida no Sistema Terra. Um perigo que passa certamente pela utilização de combustíveis fósseis. Atualmente, sabemos que o uso desse tipo de energia é um grosseiro atentado a inteligência, de modo que a transição energética é uma tarefa inadiável. Contudo, há outras atitudes essenciais para escorar a pilastra que sustenta o céu. A manutenção da biodiversidade de nossos biomas e a conservação das florestas são essenciais, pois há uma estreita relação entre as árvores e a regulação do ciclo hidrológico da biosfera. Utilizando energia solar, as árvores absorvem água pelas raízes e transpiram vapor d’água pelas folhas. É dessa forma que elas controlam o clima, o regime de chuvas e criam um ambiente favorável para si mesmas e para as demais espécies que delas dependem, como os seres humanos – inclusive os garimpeiros, os grileiros e os (des)matadores.

Assim, quando se desmata a floresta amazônica para a criação bovina, ou quando se queima a mata nativa no Mato Grosso, ou se destrói o Bioma Mata Atlântica, o clima nas regiões sudeste e centro-oeste tende a ficar mais quente e mais seco, pois enfraquece-se o componente do Sistema Terra que oferece o serviço ecossistêmico de regulação da água que se precipita naquelas regiões. Pois, esse clima cada vez mais quente e mais seco funciona como uma espécie de barreira ao avanço das frentes frias que entram no continente pela região sul. Embarreiradas em contato com a massa de ar quente e seco, tais frentes se convertem em muita chuva concentrada em determinado recorte do espaço geográfico, como o que se observa no Rio Grande do Sul.

Nos últimos dias, foram produzidos documentos com cálculos, projeções de custos e formação de fundos monetários à reconstrução do substrato material e condição inalienável de existência dos gaúchos e gaúchas. Estudos importantíssimos, pois necessários e urgentes. Mas não recordamos de nenhum, que tenha mencionado o fato de que as enchentes cada vez mais recorrentes no Rio Grande do Sul se associam ao padrão de reprodução do capital que se concretiza no Mato Grosso ou na região do MATOPIBA – fronteira agrícola que cresce muitas vezes mediante grilagem de terras, queimadas e desmatamentos criminosos.

Na ausência de uma mudança radical no padrão de apropriação espacial naqueles lugares da Federação onde se aprofunda o neoextrativismo, talvez seja prudente pensar-se na manutenção de um fundo de reconstrução permanente e suficientemente grande destinado ao enfrentamento do “novo normal” no Rio Grande do Sul; quiçá não seja desprezível a probabilidade de tragicamente termos que nos empenhar em recolocar o céu dos gaúchos no lugar por mais de uma vez – se, de fato, ainda nos restar tempo para isso.

O céu não desaba de vez, ele cai primeiro na cabeça de alguns

Com as chuvas que caem insistentemente sobre o Rio Grande do Sul, Porto Alegre colapsou. A capital gaúcha se espalha às margens do guaíba, um estuário onde desembocam vários rios. A cheia desses rios provocou a cheia do guaíba, que transbordou e invadiu as ruas de Porto Alegre.

Como não poderia deixar de ser, os bairros às margens do guaíba foram os mais afetados. E no momento em que este texto está sendo escrito, muitos deles continuam completamente alagados (p.ex. Humaitá e Sarandi). O quadro é desolador, são centenas, talvez milhares de residências com água até o teto. E isso não se resume à Porto Alegre, visto que algumas cidades da sua região metropolitana também se localizam às margens do guaíba, como o município de Eldorado do Sul, que ficou mais de 80% alagado. O ponto de destaque aqui é que, de maneira geral, quem vive – ou vivia – nos bairros e regiões mais alagadas com a cheia estão longe de ser os mais favorecidos pelo desenvolvimento do atual modelo de sociedade. Em Porto Alegre, os bairros mais vulneráveis às enchentes não são aqueles onde vivem as pessoas de maior poder aquisitivo, muito pelo contrário, são justamente onde estão as pessoas menos favorecidas.

O contraste inquieta. Enquanto bairros mais pobres duramente afetados pela enchente – como Humaitá e Sarandi – seguem debaixo d’água e seus moradores amontoam-se em abrigos improvisados, em bairros nobres da cidade pessoas fazem caminhadas no parque ou confraternizam em quadras de beach tênis. Embora não sejam, parecem dois mundos à parte. Essa desigualdade gritante em Porto Alegre é uma manifestação do que poderíamos chamar injustiça ambiental. Como comprova a situação atual de milhares de porto-alegrenses, são os mais pobres que arcam com os pesados custos de devastação que toca a emergência climática em curso. Para estas pessoas, que cotidianamente já enfrentam uma vida mais dura, infelizmente, o céu desabou primeiro.

O negacionismo cínico armou a bomba que trouxe parte do céu abaixo

Ao falar ou escrever sobre a tragédia porto-alegrense é difícil resistir à tentação de recorrer às palavras de Gabriel Garcia Márquez. Se o que vemos não é a crônica de uma morte anunciada, é certamente uma situação crônica anunciada reiteradamente por estudos científicos.  Trágica possibilidade, que se fez realidade muito em função de uma desfaçatez que assume ares de criminosa. Afinal de contas, não faltaram alertas de que o sistema de contenção de inundação (formado por diques, muros e casas de bombas) que ajuda a sustentar o céu porto-alegrense precisava urgentemente de manutenção.

Documentos internos do Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) vieram à tona no dia 20 de maio [1]. Estes comprovam que – após a cheia de novembro de 2023 – a prefeitura de Porto Alegre foi comunicada sobre problemas em quatro estações de bombeamento de águas pluviais. Duas delas no Centro Histórico, uma no Menino Deus e uma no Sarandi. Diante do aviso, o prefeito Sebastião Melo preferiu a desfaçatez do negacionismo. Infeliz escolha, naqueles bairros o prejuízo material foi gigantesco, visto que foram duramente alagados, talvez especialmente o último, onde mais de 20 mil pessoas tiveram que deixar suas residências e onde muitas destas ainda seguem debaixo d´água.

Mas o cinismo negacionista do prefeito que se elegeu surfando a onda bolsonarista não para por aí. De maneira geral, o aparato de proteção contra enchentes de Porto Alegre é uma combinação de dois sistemas. O de bombeamento – que retira a água da cidade – é um deles. O outro é o de proteção – que impede que água do guaíba avance em direção à cidade. Este último é um sistema de 60 km de extensão composto pelo grande muro da avenida Mauá, por 14 comportas e por 4 diques de proteção. Ante a falta de manutenção, houve o rompimento de um dique próximo ao bairro Sarandi, além da água que passou irresoluta pelas comportas carentes de reparos, especialmente em seu sistema de vedação.

Dinheiro para a necessária manutenção preventiva não faltava. Acontece que numa clara ação de sucateamento – talvez com a expectativa de privatizar a autarquia – o prefeito Sebastião Melo reteve R$ 400 milhões no caixa do Departamento Municipal de Água e Esgoto (Dmae). Diante de tantos estudos científicos e dos alertas de especialistas, é difícil não qualificar de cínico o negacionismo do prefeito Melo, mas também de condenar a sua irresponsável falta de cuidado para com a população porto-alegrense, no mínimo, de dolosa. A conta de tamanho cinismo é incomensurável.

Recolocar o céu no lugar passa por afastar certas ilusões

Desde a Revolução Conservadora de Ronald Reagan, Margareth Tatcher e Paul Volker, é com base em diligente trabalho de propaganda que os think tanks do neoliberalismo difundem uma ideia no imaginário não apenas de economistas, políticos e formuladores de políticas públicas, mas também de pessoas vulneráveis, por vezes perdidas, muitas vezes sem emprego e carentes de um discurso que lhes justifique a desgraça socioeconômica que lhes acomete. Exaustivamente repetido para que se torne uma verdade, o mantra neoliberal afirma que é necessário reduzir o custo do trabalho para o empregador, mas também que não existe “almoço grátis” e que a pobreza é o justo castigo pela indolência ou falta de iniciativa individual empreendedora. Para os defensores dessa ideia, o Estado é uma espécie de fardo que onera demasiadamente a sociedade com suas políticas redistributivas e seu sistema de garantias sociais. É na ilusão provocada por ideias como esta que políticos como o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), e o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), não titubeiam em sucatear o patrimônio público para em seguida privatizá-lo. O exemplo do Dmae é emblemático e mostra o quão desastrosa é a ilusão neoliberal a respeito das funções e da natureza do Estado.

Menos ruim para o povo do Rio Grande do Sul que o Governo Lula não se deixou iludir e agiu rápido através da Medida Provisória 1223/2024, que abre crédito extraordinário no valor de R$ 1.828.262.094,00 para ações de apoio e de reconstrução do estado do Rio Grande do Sul. A Medida Provisória contempla despesas em obras e serviços para a retomada de atividades das universidades e institutos federais (R$ 22.626.909,00), o fortalecimento da assistência jurídica integral e gratuita (R$ 13.831.693,00), suporte aos serviços de emergência e conectividade (R$ 27.861.384,00), ações de fiscalização e emergência ambiental (R$ 26.000.000,00), aquisição de equipamentos para Conselhos Tutelares (R$ 1.000.000,00), ações da Defesa Civil (R$ 269.710.000,00), o Auxílio Reconstrução (R$ 1.226.115.000,00), além das ações integradas das Polícias Federal, Rodoviária Federal e da Força Nacional de Segurança Pública (R$ 51.260.970,00).

Abaixo mais algumas ações do Governo Lula em socorro aos gaúchos e gaúchas:

1- Auxílio Reconstrução – R$ 5.100,00 para cada família atingida pela enchente.

2- Saque Calamidade do FGTS- Cada trabalhador com saldo do FGTS pode sacar até R$ 6.200,00 de sua conta do Fundo de Garantia. 

3- Antecipação do Pagamento do Bolsa Família – Todos os beneficiários do programa receberam o benefício antecipadamente no dia 17 de maio.

4- Ampliação do Bolsa Família – Estão sendo incluídas no programa mais 21 mil Famílias no RS. 

5- Antecipação do Abono Salarial para trabalhadores do RS – O calendário de abono salarial que seria pago durante o restante do ano foi antecipado para maio. 

6- Liberação de duas parcelas adicionais do Seguro Desemprego – Para trabalhadores desempregados que já recebiam o benefício

7- Antecipação da Restituição do imposto de renda – Pagamento da restituição no primeiro lote para moradores do Rio Grande do Sul que já entregaram sua declaração 

8- Compra Assistida – Toda família com renda até R$ 4.400,00 e que perdeu sua casa na enchente poderá selecionar um imóvel até o valor do teto 2 do Minha Casa Minha Vida (na região metropolitana de Porto Alegre atualmente esse teto é de R$ 170.000,00) 

9- Suspensão por 6 meses das parcelas mensais dos financiamentos habitacionais – Para financiamentos feitos pelo Minha Casa Minha Vida ou FGTS.

10- Suspensão de pagamentos de empréstimos do BNDES – As empresas gaúchas com financiamentos do BNDES tiveram suspensos os pagamentos em aberto e futuros nos próximos 12 meses nos créditos do BNDES. 

11- Crédito de R$500 milhões para micro e pequenas empresas pelo BNDES;

12- Renegociação dos créditos Rurais contratados com o BNDES via instituições financeiras;

13- Linha de crédito de R$5 bilhões para empresas atingidas pelas enchentes;

14 – Minha Casa Minha Vida Calamidade – Construção e reforma de moradias afetadas pelas enchentes (a ser anunciado)

15- PAC Calamidade –  Para obra de contenção e prevenção nos municípios atingidos e com áreas de risco.

16- Recursos Aprovados pela Defesa Civil Nacional para Assistência Humanitária, Restabelecimento, Reconstrução e Proteção Animal R$ 254.451.151,05.

Talvez essas ações ajudem gaúchos e gaúchas que acreditam na carcomida cantilena neoliberal a rever suas ideias. E aos defensores da ilusória ideia de que o Estado atrapalha a pôr a mão na consciência. Que a alocação dos recursos públicos passe pela participação direta da população, como o Orçamento Participativo, no controle e destinação das verbas. As pessoas que hoje se veem abandonadas nos bairros alagados não gozam dos instrumentos para mostrarem o seu descontentamento, fortalecer a democracia direta é urgente para que não se repitam episódios de negligência do poder público nos investimentos necessários para a preservação da vida e dos recursos materiais. Não são apenas os mortos que não mudam de ideia, os tolos também.

Nota

[1] Conforme aponta o Sindicato dos Técnicos-Administrativos da UFRGS, UFCPA e IFRS.

(*) GEPOL – Grupo de Estudos em Economia Política e Ecologia Política da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

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