Opinião
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14 de maio de 2024
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07:40

É preciso ser radicalmente anticapitalista (por Carlos Eduardo Ribeiro)

Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Carlos Eduardo Ribeiro (*)

O presente século é atormentado globalmente por pelo menos dois problemas fundamentais os quais, na verdade, decorrem já do século passado, agora acelerados: 1) a paulatina precarização da vida da maioria e 2) a catástrofe ambiental. O modo de produção capitalista não apresenta respostas para nenhum desses problemas, quer seja a nível de mercado, quer seja por parte dos políticos que se alinham com a ideologia capitalista. Não é surpresa. É justamente a farsa de que vivemos no único mundo possível, do único modo viável, que sustenta a ideologia capitalista.

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Comecemos pela questão ambiental. Muitos são seus efeitos e causas: aumento da temperatura global devido à poluição crescente e sem trégua, diversos vazamentos nucleares de efeitos nefastos incalculáveis, diminuição da biodiversidade global, distúrbios sísmicos produtos da mineração e extração de petróleo, piora da qualidade do ar e da água, etc. Muito ao contrário de operar em direção a mitigar a catástrofe que já adentramos, o trabalho capitalista consiste em transformar a natureza em mercadoria em ritmo cada vez mais acelerado. Isso significa um desprezo por tudo que é comum (a natureza) em favor do que é privado (a mercadoria), o que explica o porquê de o mercado não se interessar francamente em reparar os danos ambientais. Faz mais sentido na lógica dos negócios derrubar uma área de preservação e plantar soja, do que reflorestar. Dá mais lucro produzir uma série de mercadorias dispensáveis que em anos estarão jogadas ao mar junto de tantas outras, do que limpar o mar e preservar a vida marinha. Dá mais lucro produzir grandes extensões de soja transgênica voltada à exportação do que produzir os alimentos saudáveis que faltam na mesa de tantos brasileiros. As poucas organizações que heroicamente trabalham em prol da reciclagem, do reflorestamento e do meio ambiente dependem do voluntariado, de migalhas de capital público ou de leis que obriguem empresas poluidoras a repararem alguma parte do dano ambiental que causam. A situação dos catadores que realizam nas cidades o trabalho diário de encaminhamento do lixo, e que vivem nas posições mais baixas da camada social, expressa a falta de prestígio que a lógica capitalista dá aos que tentam mitigar o dano dos seus infindáveis resíduos. 

Enquanto cientistas declaram a provável irreversibilidade da crise ambiental na qual estamos entrando de cabeça, o mercado segue interessado em outra coisa: a criação e satisfação dos desejos mais frívolos e a produção bens de consumo que em poucos anos estragarão e aumentarão as pilhas de lixo. O capitalismo é um surto de produção e aceleração, por excelência incompatível com a preservação. É essa aceleração constante o que se quer levar adiante quando se elogia a “eficiência” do setor privado. Essa suposta eficiência, porém, se transforma no mais vagaroso desinteresse e no mais vigoroso negacionismo quando se trata de garantir um planeta seguro para as próximas gerações e vida digna para os mais pobres. Na lógica do mercado, mais vale a liberdade (de lucrar, de pensar em si sobre todas as coisas e todas as pessoas) do que a ecologia e o sentimento de comunidade. Em nome dos interesses privados, negam-se os interesses comuns, que dizem respeito à preservação dos mares, das florestas, da água, do ar, da garantia de uma temperatura planetária que propicie uma vida confortável. Mais do que negar a natureza que nos faz comuns (e que, por não ser privada, é vista como sem valor), o capitalismo nega a comunidade justamente ao buscar fazer crer que, com os que dormem nas ruas, com os que passam fome, nada temos em comum. 

Já diagnosticou acertadamente Karl Marx que o modo de produção capitalista tende ao oligopólio. Isso significa que o capital se concentra cada vez mais nas mãos de uma minoria, enquanto uma fatia cada vez maior da população vive na miséria. Isso se verifica em todo o mundo capitalista, cada vez mais a cada nova crise. Mesmo com toda a “eficiência” do setor privado, com todo o avanço tecnológico, com todo o “trabalho” que a humanidade realiza incansavelmente dia após dia, como pode a miséria vir se expandindo? Para o que trabalhamos então, afinal de contas? A resposta é: para os interesses do mercado, que não são os interesses do planeta, nem mesmo da humanidade. Uma das mais antigas falácias capitalistas é a de que o mercado recompensa os que servem à sociedade. Outra é a de que o “desenvolvimento” resolverá o problema da miséria: através da produção de mais mercadorias, da exploração de mais trabalho, da expansão da cultura de mercado, os capitalistas prometem que daremos condições de vida digna aos excluídos. A produção aumenta, o trabalho aumenta, o mercado aumenta e o Estado diminui, mas a miséria sempre permanece e aumenta junto. A promessa desenvolvimentista é, por exemplo, a promessa que nos faz o agronegócio. A verdade, porém, é que nesse modelo de desenvolvimento cada vez mais a renda se concentra, cada vez mais os salários e direitos trabalhistas minguam, e minguam mesmo os postos de trabalho. Essa é a realidade global. Quando essa realidade é tão flagrante que não pode mais se esconder aos olhos da classe trabalhadora, os capitalistas apresentam soluções como a reforma trabalhista, que tão e somente reduz os direitos da maioria, sem cumprir a promessa de gerar mais empregos. Isso tudo para maquiar a verdade de que o mercado não se propõe a propiciar vida digna a todos: mais do que isso, o mercado, pelo funcionamento de sua lógica, não tem como propiciar isso.

O mercado se interessa pela produção, consumo e construção de desejo por mercadorias. Pelo movimento monetário por si mesmo. Multiplicam-se cada vez mais as formas de trabalho que em nada ou pouco atacam problemas reais, os quais a realidade social capitalista insiste em encobrir e que são, dentre outros, os já citados problema ambiental e da miséria. Enquanto estes se agravam, as pessoas que são revestidas com aparência de dignidade na realidade social capitalista são os que mais consomem: consomem mercadorias e assim consomem com os recursos naturais. Somos ideologicamente incitados a buscar nos diferenciar através da posse de coisas, a acumularmos e nos adonarmos de partes que, outrora, já foram natureza e já pertenceram ao comum. Incitados também a buscar nos diferenciar ao consumir marcas “distintas”, de luxo, cuja função é justamente nos afastar de um sentido de “comum” com os demais, especialmente com os mais necessitados, que a elas não têm acesso. Nos afastarmos socialmente desses é justamente o sucesso na lógica capitalista.

Enquanto o capitalismo diz que para os problemas mais sérios da humanidade não há o que fazer, o que a democracia burguesa pode oferecer são pequenos paliativos, campanhas de diminuição do uso de plástico, empresas que fazem incipientes gestos em prol do meio ambiente, políticas assistencialistas sempre insuficientes. A verdade é que o problema ambiental e o problema da miséria só existem nas proporções em que existem pela prolongada aplicação do modo de produção capitalista. Como todas as bugigangas dispensáveis que um dia acabarão virando poluição nos mares e rios, esses problemas são produtos do capitalismo, justamente porque o capitalismo nos faz insistentemente negligenciar os problemas reais enquanto leva nossos olhos a produtos, à realização de desejos imediatos, a pagar novamente a cada mês pelos recursos mais básicos de nossa sobrevivência como moradia, alimentação e energia. 

Não há saída para os mais pobres e para o planeta se não houver uma mudança de rota de proporções propriamente revolucionárias. Essa não deve ser uma afirmação ousada, mas facilmente alcançável se ouvirmos com atenção o que oferecem os políticos burgueses e os megaempresários: nada, reticências, produtos, distrações. Não há propostas de soluções nem projetos viáveis em curso senão arrocho, precarização e crise ambiental. O “trabalho”, na forma com que é organizado e direcionado no capitalismo, não ataca os problemas mais graves que enfrentamos. Nem as pessoas “de sucesso” nesse sistema, as que somos incitados a admirar, são as que lutam pela resolução dos problemas concretos de nosso tempo, mas sim especuladores financeiros, artistas, estrelas do esporte; ocupações as quais compõem, voluntariamente ou não, o canto da sereia do capitalismo. Enquanto se perpetuam a fome e a progressiva catástrofe ambiental, os que lutam contra essas mazelas muitas vezes são perseguidos e mortos e não têm qualquer apoio significativo dos que vivem para o lucro. Apenas em um sistema no qual reescrevamos valores, e no qual o trabalho esteja voltado verdadeiramente para os reais interesses das comunidades, será possível garantir uma condição de vida digna às pessoas e a própria continuação da caminhada da humanidade nesse planeta. É preciso imaginar e produzir um mundo no qual repensemos profundamente para que trabalhamos.

(*) Morador de Porto Alegre. PhD em Comunicação na Fabico (UFRGS)

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