Opinião
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19 de maio de 2024
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13:51

As contradições da tragédia no RS: por que a extrema-direita está “vencendo” o debate climático? (por Matheus Hein)

Foto: Giulian Serafim/PMPA
Foto: Giulian Serafim/PMPA

Matheus Hein (*)

Ao sofrimento que o povo gaúcho enfrenta, vem se somando uma grande onda de desinformações e uma narrativa de extrema-direita que tenta apropriar-se do tema para fortalecer sua linha na batalha ideológica que o Brasil cruza. O modus operandi da extrema-direita — criar uma realidade paralela através da distorção dos fatos, ou diretamente forjando mentiras — está em plena operação durante a catástrofe, o que torna ainda mais trágico um cenário gravíssimo. Essa movimentação não é por acaso, mas decorrente de uma conclusão que a extrema-direita chegou: a catástrofe no estado é o principal fato político no ano e, mais do que isto, um acontecimento que coloca em xeque um dos seus principais fundamentos ideológicos, isto é, o negacionismo climático. O lógico seria o descrédito desse campo político frente a um evento da realidade que demonstra a veracidade da crise climática e a óbvia falsidade das posições da extrema-direita. Infelizmente, em tempos de bolsonarismo vivo e rastejante, a lógica perde espaço para um discurso político inflamado e uma base radicalizada. Cientes disto, movimentaram-se para não apenas anular as contestações sobre a realidade incontestável da emergência climática, mas também para fortalecer outros pontos cruciais da sua narrativa torpe e mentirosa.

O Estado só atrapalha? 

Grande parte das fake news espalhadas tem como tema central a ideia de que as estruturas estatais estão servindo apenas para atrapalhar as iniciativas bem intencionadas neste momento de calamidade. De onde viriam as iniciativas? Empresários e indivíduos. São diversas notícias falsas sobre o tema, mas alguns exemplos são a imagem viral de um helicóptero da Havan realizando o resgate de atingidos, as informações de que caminhões com doações estariam parados devido a falta de notas fiscais e a proibição de voluntários com jet-skis por não estarem com documentação em dia. Todas notícias falsas e desmentidas, mas que seguem circulando como verídicas e provocando um tremendo estrago no imaginário popular sobre o que está ocorrendo no Rio Grande do Sul. O objetivo é fortalecer três das ideias centrais da extrema-direita do nosso tempo: 1) a inutilidade do Estado e, portanto, a validade da ideologia do Estado mínimo; 2) O papel honroso e positivo desempenhado por empresas e grandes empresários; 3) A primazia do indivíduo sobre o conjunto social. 

Não são ideias novas, pelo contrário. É importante destacar a convergência entre o ideário desta extrema-direita com o do neoliberalismo. A defesa do encolhimento do Estado, a importância dos empresários na sociedade e a inexistência da “sociedade”, sendo apenas possível afirmar a existência de conjuntos de indivíduos, estão na raiz do pensamento neoliberal formulado por nomes como Milton Friedman, Friedrich Hayek e Ludwig von Mises. Não é obra do acaso que os pensadores neoliberais foram referência para governos repressivos como de Thatcher e Reagan, além de mentores de regimes ditatoriais como de Pinochet. Hoje, a extrema-direita combina a lógica mercadológica do neoliberalismo com uma ideologia ainda mais reacionária, retrógrada e violenta. Mobilizam sua base com o ódio contra justiça social e iniciativas estatais que possam resultar em benefício para a classe trabalhadora e oprimida. Aproveitaram a tragédia que assola os gaúchos para testar os limites da sua narrativa, contrapondo à realidade a sua própria visão do que está acontecendo, como se colocasse o cenário atual de frente para um espelho distorcido. Infelizmente, tem encontrado entrada.

Também não é por acaso que todas as instâncias do poder público tornaram-se alvos de ataques, com exceção de Sebastião Melo. O prefeito da capital tem suas digitais espalhadas por todo o caos que toma conta de Porto Alegre: uma gestão abertamente anti-ecológica; um vice-prefeito negacionista climático; o sucateamento do DMAE com intenção de privatização; a situação precária das casas de bomba; a ausência de investimento no sistema de prevenção de enchentes… a lista é longa. Melo já tinha sido posto a prova no início do ano, quando Porto Alegre foi atingida por outro evento extremo, e ficou comprovada a sua negligência — afinal, quem pode esquecer que a prefeitura precisou pedir para a população até mesmo motosserras? De todo modo, esse exército de mentirosos da extrema-direita segue poupando o prefeito. Por quê? A resposta é simples: são sua base social. Sebastião Melo é um representante do bolsonarismo no estado, sua base na câmara de vereadores é de extrema-direita e sua visão para Porto Alegre reflete perfeitamente todos os elementos cruciais para a ideologia reacionária anteriormente mencionada. Faz parte da estratégia da extrema-direita que Melo saia fortalecido desta tragédia, para que saia na frente no pleito eleitoral do segundo semestre. 

A crise climática não tem nada a ver com isso?

Como não poderia deixar de ser, a negação da relação entre a catástrofe no estado e a crise climática faz parte do roteiro estabelecido pela extrema-direita. É neste ponto que a ideologia negacionista assume sua face mais abjeta, lunática e assustadora. Na torrente de mentiras e teorias conspiratórias, surge de tudo. Uma das teorias é de que as chuvas seriam causadas por “chemtrails”, rastros químicos que seriam liberados por aviões. Inclusive, pipocam vídeos de aviões cruzando o Rio Grande do Sul e deixando uma marca no céu, o que para estes teóricos da conspiração seria uma prova incontestável. Outra teoria diz que é o efeito da HAARP, um programa de estudo norte-americano sobre a ionosfera que utiliza antenas localizadas no Alasca. Nas estórias da extrema-direita, entretanto, o verdadeiro objetivo seria uma operação com intenção de criar um desbalanço climático intencional e utilizar-se da “agenda climática” para instaurar uma “tirania verde” através do “ecoterrorismo”. Aliás, essas expressões foram usadas por Bolsonaro recentemente que, em meio ao caos no Rio Grande do Sul, resolveu criticar políticas climáticas incentivadas pela ONU. Alguns vão para um caminho mais fácil, ainda que completamente equivocado: se já teve uma cheia de proporções semelhantes em 1941, então não tem sentido afirmar que a atual é decorrente da crise climática. Por óbvio, todas as afirmações destas teorias são estapafúrdias e facilmente refutáveis, mas não é isso que importa para a extrema-direita. O importante é criar uma enxurrada de informações falsas para que seja difícil discernir quais são as verdadeiras.

Enquanto a desinformação é espalhada nas redes, os representantes do bolsonarismo no estado também cumprem o papel de buscar ser a referência política no momento. Através de ações de “voluntariado”, auxílio nos resgates e intervenção nas redes, políticos do campo bolsonarista buscam legitimidade frente à população, com óbvia intenção de angariar votos. O plano também corresponde a outro objetivo: ganhando legitimidade através de esforços na ajuda aos atingidos, pretendem legitimar o próprio discurso negacionista climático quando proferirem. É um ciclo nefasto que se retroalimenta. Nesse lamaçal já formado, pouco importa que as ações destes representantes da extrema-direita sejam pífias e mero espetáculo reproduzido nas redes.

E a esquerda?

Para surpresa de ninguém, um dos principais alvos dos ataques do bolsonarismo é o governo federal. Não apenas as críticas, mas também as mentiras, concentram fogo em Lula e suas ações diante da crise — tanto as que o governo está de fato tomando, como aquelas que a extrema-direita inventa que estão sendo tomadas. A estratégia a curto prazo é tirar vantagem nas eleições municipais, enfraquecendo a influência dos candidatos apoiados por Lula. A longo prazo, a estratégia é chegar fortalecidos em 2026 para retomar o governo federal. A pior postura que a esquerda pode tomar no momento é a de “não politizar a tragédia”, pois a tragédia é, em essência, política. A extrema-direita entendeu isso perfeitamente e tem operado com toda força para que seu polo saia fortalecido. É preciso que a esquerda tome consciência deste fato e faça o mesmo, mas não da mesma forma, por óbvio.

 Para a esquerda da capital, é essencial apontar os culpados e enfrentar as mentiras. Se Melo sair deste processo fortalecido, a derrota para o povo porto-alegrense será ainda mais profunda. Precisamos apontar todos os erros da gestão, a negligência absurda, o negacionismo aberrante. Denunciar que Melo entrega a cidade para a iniciativa privada e que isto está cobrando o seu preço. Que a prefeitura não prioriza a vida dos cidadãos e a consequência é o desalento e destruição que o povo se encontra. Defender que é possível uma outra forma de gerir a cidade, com um projeto ecológico e popular. Defender união para reconstruir a cidade de forma abstrata e despolitizada é um erro crasso que terá consequências políticas gravíssimas. Os culpados precisam ser identificados e devem lidar com as consequências. Em suma, a esquerda deve ter uma posição que se apoia em dois pontos: Solidariedade de classe e enfrentamento aos culpados e ao bolsonarismo. É preciso deixar claro que o que está acontecendo é resultado da crise climática e do negacionismo dos governantes gaúchos, seja no governo municipal, seja no governo estadual. Nós estamos perdendo o debate climático, mas a situação segue em aberto. A nossa batalha é pela vida do povo: hoje e no amanhã. Para isso, é preciso entender que estamos em guerra. Não contra a natureza, mas contra a extrema-direita.

(*) Matheus Hein é doutorando em filosofia e pesquisador sobre as mudanças climáticas. Também é militante do Afronte e da Resistência/PSOL.

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