Opinião
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28 de maio de 2024
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12:42

A catástrofe climática e uma nova concentração fundiária (por Guilherme Cassel e Carlos Mário Guedes de Guedes)

Cruzeiro do Sul, no Vale do Taquari. Foto: Gustavo Mansur/Palácio Piratini
Cruzeiro do Sul, no Vale do Taquari. Foto: Gustavo Mansur/Palácio Piratini

Guilherme Cassel e Carlos Mário Guedes de Guedes (*)

A tragédia ambiental que se abateu sobre o Rio Grande do Sul  pode trazer consequências ainda mais graves a médio e longo prazos  tanto para a população rural como para a urbana. Um olhar mais  atento sobre o impacto das enchentes na estrutura agrária gaúcha nos  mostra que, se nada fizermos, logo a frente, teremos uma maior  concentração da propriedade via um encolhimento significativo das  propriedades de Agricultura Familiar e, consequentemente, um forte  impacto na produção de alimentos. 

Dados obtidos pela Terra Analytics nos mostram que mais de 2  milhões de hectares de vegetação nativa foram desmatadas nos  últimos 16 anos. A quase totalidade deste desmatamento teve como  objetivo o aumento das lavouras de monocultura no Bioma Pampa. As informações a partir dos polígonos georreferenciados dos imóveis  rurais do Cadastro Ambiental Rural (CAR) consideram que mais de 20  mil propriedades foram severamente atingidas pelas enchentes, um  total aproximado de 400 mil hectares. O mesmo levantamento nos indica que 82% das propriedades afetadas são de Agricultura Familiar.  

Dados da Pesquisa Agrícola Municipal (PAM) do IBGE apontam que  90% do valor da produção gaúcha de cítricos, 74% do trigo, 89% da  batata-inglesa, 55% da banana estão em municípios que se  encontram em situação de emergência ou estado de calamidade. A  mesma dimensão de impacto vale para a pecuária leiteira, aves e  suínos, que são também predominantemente produzidos pela  agricultura familiar no RS. Ou seja, temos aí uma grande ameaça para  a produção dos alimentos que são indispensáveis à segurança  alimentar da população. 

É preciso considerarmos também que a catástrofe climática no RS impactou uma estrutura agrária já tensionada pela questão geracional  que há décadas tem alimentado a concentração da propriedade em favor dos grandes proprietários rurais. O Censo Agropecuário de 2017  demonstrou que 23% dos estabelecimentos de Agricultura Familiar do RS obtinham 50% da renda familiar oriunda da Previdência Oficial. Ou seja, o desmantelamento recente das políticas públicas voltadas ao  fortalecimento da Agricultura Familiar promovido pelos governos pós golpe até o final de 2022 empobreceram este segmento, fragilizaram  muito suas condições de produção e criaram condições favoráveis ao  êxodo rural.

Em um ambiente que combina a alta valorização da terra e do preço  das commodities mais o desmantelamento recente das políticas públicas voltadas ao fortalecimento da Agricultura Familiar nos governos golpistas é fácil imaginarmos um novo ciclo de maior  concentração fundiária no RS com a consequente ampliação das áreas de monocultura em detrimento da produção de alimentos. O chamado “capitalismo do desastre” se apropria da desmotivação das famílias e da desvalorização dos imóveis atingidos para obter  barganha, concentrar terra e buscar nova valorização, conectando  produção e especulação. 

A enchente chega, causa estragos, deixa rastros e passa. Com muita  dor, é bem verdade. Uma estrutura fundiária desigual e não voltada  para a produção dos alimentos essenciais para a população se estabelece, cria raízes e dita novas condições de futuro. Não podemos deixar que isto aconteça. 

Temos no Rio Grande agricultores familiares que perderam toda a sua  produção; temos os que perderam quase tudo e temos também  aqueles que perderam inclusive a sua terra quando as águas  desenharam novos contornos na nossa geografia. É gente que carrega consigo história, experiência e conhecimento. Gente que ao  longo dos anos tem produzido a grande maioria dos alimentos que  consumimos. Gente que sempre respeitou a natureza e que agora  está pagando caro pela ganância de alguns irresponsáveis. É nosso  dever ajudá-los para que não desistam, para que persistam na terra  produzindo com qualidade. Se nas cidades atingidas pelas enchentes  aqueles que perderam suas casas terão direito a novas casas, parece  justo que, no meio rural, quem perdeu suas terras também tenha  direito a outra terra. É possível, sim, o governo comprar e arrendar  terras para quem perdeu parte importante da sua produção ou mesmo  parcela importante da sua propriedade.  

O tamanho da tragédia exige mais do que as políticas públicas tradicionais de crédito, assistência técnica, seguro ou comercialização. É preciso garantir terra para quem quer e sabe produzir. É preciso  impedir que no rescaldo da tragédia a ganância dos especuladores acabe por produzir ainda mais concentração fundiária e desigualdade  no campo gaúcho.  

(*) Guilherme Cassel foi ministro do Desenvolvimento Agrário. Carlos Mário Guedes de Guedes foi presidente do Incra

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