Opinião
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23 de abril de 2024
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08:03

Nunca vi meus pais crianças (Coluna da APPOA)

Foto: Arquivo pessoal
Foto: Arquivo pessoal

Volnei Antonio Dassoler (*)

A manhã ensolarada daquele sábado animava os convidados para o grande encontro familiar transgeracional. Logo na entrada, num mural artesanal, diversas fotografias em preto e branco – algumas datadas no início do século passado – compunham uma espécie de historicização genealógica da ramificação dos descendentes da minha linhagem paterna. Tendo meu bisavô, imigrante italiano, como ponto de partida, essa genealogia em imagens ordenava a filiação até a atual sexta geração. No topo das fotos perfiladas, via-se o retrato do casal que deu início a essa saga, meu bisnono e minha bisnona, participantes da grande imigração transoceânica que se deu entre 1870 e 1920. No padrão característico das fotografias da época, ambos, com uma expressão circunspecta, encontravam-se sentados em pose rígida, formal. Abaixo, outras fotografias se distribuíam compondo um álbum de família em que os descendentes consanguíneos, filho/as, netos/as, bisnetas/os e agregados/as se juntavam metaforizando ramos de uma mesma árvore-raiz.

Era inevitável, antes de chegar ao salão principal, deter-se, por instantes, nesse painel. Conservadas ao longo do tempo como fonte privilegiada de memória afetiva e documental, essas imagens eram conhecidas pela maioria. Entretanto, no contexto de integração íntima e pública que revestia a festa, o encontro com elas parecia tornar possível agregar valor de experiência ao vivido: cada participante recuperava ali, além da sua individualidade, a atualização de uma memória coletiva ao se perceber elo de uma história compartilhada por todos em alguma medida. Novatos nessa modalidade de encontro, os mais jovens miravam o mural com curiosidade fugaz. Entre aqueles da geração mais antiga, as fotos, por si sós, suscitavam o prazer de uma intimidade compartilhada que os enlaçava em narrativas comuns tecidas pela herança simbólica de pertencimento a um mesmo sobrenome. Entre um abraço e outro, as imagens, em sua materialidade, faziam-se suporte das lembranças e narrativas orais – divertidas, tristes, complexas – de fatos e acontecimentos com diferentes graus de verossimilhança. Lembranças e narrativas que também chegavam com muitas perguntas: o que houve com a tia-avó internada no Hospital Psiquiátrico São Pedro até o fim da vida? O que teria acontecido com o irmão do meu avô que foi tentar construir a vida num lugar distante e do qual não se teve mais notícia? A grafia do sobrenome corresponderia à mesma da origem ou teria sido alterada por interferência e erro no registro do cartório? 

As fotografias antigas são personagens essenciais desse tipo de encontro transgeracional. Versáteis, guardam um valor histórico-documental e também emocional. Agregando uma dimensão social ao caráter afetivo, informam sobre os costumes de uma época, de uma região ou cultura, por meio de tudo aquilo que mostram: as vestimentas, a relação entre os gêneros, os mecanismos de produção do trabalho, os modos de ser criança. Enquadramento de um instante capturado e isolado no tempo e no espaço, a fotografia em si nos faz transitar entre uma realidade aparentemente concreta retratada e a imaginação que, inevitavelmente, mobiliza: qualquer detalhe da cena mostrada é capaz de sobressair e chamar a nossa atenção, sejam pessoas, casas, roupas, móveis, natureza, gestos, sombra, luz. 

Por trás de cada foto existem sempre várias histórias que se dão a ver ao nosso olhar singular. Assim, o olhar respeitoso e amoroso dirigido às fotografias de época não se limita a uma única leitura mediada pela nostalgia sobre um passado idealizado que, de fato, nunca existiu como tal. Há, nesse sentido, em toda e qualquer fotografia, uma dimensão invisível que escapa aos nossos olhos, órgão sensorial que, por sua limitação, não consegue capturar a totalidade da realidade. Paradoxalmente – e também positivamente –, esse traço de impossibilidade nos empurra, levando-nos além das aparências, num movimento lúdico e inventivo do pensamento movido pelo desejo, relicário sagrado que perpassa as vicissitudes da transmissão simbólica entre as gerações de um grupo familiar e que fortalece os laços sociais na mesma medida em que respalda e reconhece a pertinência das escolhas subjetivas. 

Num determinado momento da confraternização, quando os adultos já estavam acomodados, minha atenção foi despertada por duas ou três crianças que, divertida e livremente, corriam pelo salão em torno das mesas e cadeiras. Déjà vu! Instantaneamente, tive a ilusão de que já tinha visto essa cena. A memória veio em meu socorro e me lembrei de mim mesmo, quando pequeno, correndo assim em outros salões; e também de ter observado, inúmeras vezes, outras crianças na mesma situação em eventos de adultos. Na mesma hora, lembrei-me dos primeiros versos da canção de Caetano Veloso Força estranha: “eu vi o menino correndo, eu vi o tempo, brincando ao redor do caminho daquele menino”. Mais uma vez, a passagem do tempo me pegava desprevenido. 

Naquele dia, enquanto voltava para casa, comecei a pensar que nunca havia visto meus pais crianças, e essa ideia me entristeceu. Não desconhecia o contexto da sua infância; afinal, já havia escutado relatos daquele período que traziam riqueza de detalhes: com que objetos eles brincavam, como se comportavam, quais eram as dificuldades de sobrevivência (e a inevitável comparação com os confortos da vida moderna). Um tanto inconformado, segui abatido por saber que nunca me seria dada a oportunidade de vê-los quando crianças. Sem muito sucesso, tentei imaginá-los receosos, deitados na escuridão do quarto, alegres pelo presente de Natal, apreensivos pela exigência de aprender as primeiras letras, na espontaneidade da voz que entoava a canção recém-aprendida, no choro doído de um ferimento, na confiança na fé depositada num pedido em forma de oração, no conforto acolhedor do abraço materno/paterno num momento de desamparo e angústia. Quando nasci, para mim, meus pais nasceram junto comigo e já adultos. Nunca os vi crianças; para mim, sempre os tive adultos. Reconhecer a infância dos meus pais, deve me tornar mais sensível e menos egoísta na minha condição de filho. Depois do último encontro com as fotografias em preto e branco, decidi brincar ao redor do impossível do tempo, imaginando secretamente meus pais em suas vidas como crianças.

(*) Psicanalista, Doutor em Psicologia Social e Institucional (UFRGS) e membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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