Opinião
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2 de abril de 2024
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07:14

A vida dos soldados que matam e mutilam crianças “inimigas” (por Milton Pomar)

Foto: UNICEF/UNI448902/Ajjour
Foto: UNICEF/UNI448902/Ajjour

Milton Pomar (*)

Quando se vê na iminência de ter que matar uma criança (no filme “Sniper americano”), o soldado da Marinha dos Estados Unidos (EUA) Chris Kyle – representado pelo ator Bradley Cooper – vacila por um instante, e em seguida aparenta ficar aliviado por não ser mais necessário atirar no garoto iraquiano que pegara uma arma, porque ele desistiu de usá-la. Depois que saiu da Marinha, em 2009, Chris Kyle dizia ter matado 255 pessoas, e não os 160 admitidos oficialmente. Bem mais que o recorde anterior de um franco-atirador militar norte-americano, de 109 mortes (no Vietnã). Por isso, ele se considerava o “sniper mais letal da história militar dos EUA” – título de sua autobiografia, que serviu de base para o filme, dirigido por Clint Eastwood.

Talvez a “moral da história” que o filme pretendeu passar com o vacilo em atirar no garoto seja que até mesmo um assassino profissional titubeia em matar uma criança. Uma barreira que não se deve ultrapassar, do duvidoso código de ética dos snipers, vai saber.

Barreira ultrapassada pelo general Jacob H. Smith, comandante do massacre de Balangiga, na Ilha de Samar, em 1902, durante a invasão das Filipinas pelos EUA: “Matem todos acima de 10 anos”, foi a sua ordem. No total, estima-se que durante a ocupação militar norte-americana morreram mais de um milhão de habitantes, cerca de 10% da população das Filipinas na época.  É bem provável que desse total mais de 200 mil fossem crianças e pré-adolescentes, pelo perfil jovem da população. O que os EUA cometeram nas Filipinas é classificado como genocídio, e por isso é praticamente desconhecido, na sua longa série de invasões militares no século XX.

O massacre de My Lai, no Vietnã, em 16 de março de 1968, por soldados e oficiais dos EUA, teria resultado na morte de cerca de 500 pessoas desarmadas, muitas delas crianças – inclusive bebês –, suas mães, e pessoas idosas. No total, a ocupação militar norte-americana no Vietnã teria causado a morte de 82 mil crianças vietnamitas, quantidade maior do que a de soldados dos EUA que morreram (58 mil). Não se sabe quantas milhares de crianças ficaram mutiladas, por minas, granadas, tiros e queimaduras por napalm e bombas incendiárias. 

Todas as crianças que nasceram e cresceram na Síria desde o início da guerra, em 2011, estão cercadas por morte, destruição e sofrimento. Mais de 27 mil crianças foram mortas nessa guerra que devastou o país. Um total de 606 mil pessoas teriam sido mortas até agora, sendo 307 mil civis. E 2,1 milhões de pessoas sofreram ferimentos, parte delas ficando mutiladas – talvez pelo menos 50 mil crianças estejam nessa condição. 

Quem serve Exército sempre se pergunta o que fará se receber ordem para atirar em alguém, mas não lhe passa pela cabeça receber ordem para atirar em crianças. Soldados são treinados para cumprir ordens sem pensar, e essa lógica mantêm a sua crença de que se livrarão da culpa em julgamentos por crimes que tenham cometido. 

Mas a consciência tem sua própria lógica, e é por isso que meio milhão de soldados dos EUA, das muitas guerras no Sudeste Asiático (Laos, Cambodja, Vietnã), Afeganistão, Iraque, Somália, estão com “Transtorno de Estresse Pós-Traumático” (TSPT, sigla em inglês), conjunto de sintomas que transformam em um inferno a vida “civil” dos veteranos de guerra e em muitos casos levam à morte por suicídio. 

O incrível em tudo isso é que parece que mortes e mutilações em tão grande escala não sensibilizam tanto a opinião pública quanto os massacres em escolas, intensamente divulgados pela mídia, como os casos recentes de Uvalde (Texas), em 24/05/2022, no qual foram mortas 19 crianças, e o de Blumenau-SC, em 5/04/2023, com quatro crianças mortas e cinco feridas. 

Todas essas questões vêm à mente quando assistimos na TV que soldados de Israel atacaram hospitais em Gaza, e que já passam de 12 mil o número de crianças mortas desde que começou a reação israelense ao ataque terrorista do Hamas em 7 de outubro de 2023. Como vivem os militares (oficiais e soldados) e os políticos, homens e mulheres, responsáveis pela morte de 12 mil crianças e a mutilação de 20 mil ou mais? Como vivem soldados que disparam todo tipo de armas contra alvos civis, sabendo que assim matarão e mutilarão também crianças “inimigas”?

(*) Soldado em 1978, geógrafo e mestre em “Estado, Governo e Políticas Públicas”

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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