Opinião
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2 de abril de 2024
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07:00

A psiquiatria vista por Nicolas Philibert (Coluna da APPOA)

Nicolas Philibert, diretor de Averroès e Rosa Parks (Berlinale/Divulgação)
Nicolas Philibert, diretor de Averroès e Rosa Parks (Berlinale/Divulgação)

 Alfredo Gil (*)

“A crítica da linguagem não pode evitar o fato de que nossa palavra nos engaja e nos exige fidelidade. Nomear mal um objeto é agravar as desgraças a este mundo”. (Albert Camus)

Averroès e Rosa Parks é o título do último documentário de Nicolas Philibert filmado nos muros e jardins do Hospital psiquiátrico Esquirol, outrora conhecido por Asilo de Charenton, nome da cidade que fica a dois passos a leste de Paris onde se encontra o hospital. 

Averroès e Rosa Parks são os nomes de duas unidades de hospitalização do Hospital Esquirol onde Philibert passou meses para confeccionar seu documentário com um olhar cuidadoso na observação dos diferentes espaços  dentro dos quais a loucura pode receber asilo. Se mostrando realista no contato com a doença mental quando ela acossa o sujeito em um mundo sem ar nem saída, podemos acompanhar o esforço humanista da equipe médica em ajudar aquele que da psicose padece a entrever tempos de contingência em sua vida, protegendo-o da imposição ameaçadora contínua que por vezes caracteriza seu sofrimento. 

Com este documentário, Philibert talvez ajude o grande público, não somente a se desfazer da representação da loucura como perigosa e dos “hospícios” como lugar de contenção violenta, mas realça a porção de dignidade de uma parte da sociedade que se desloca a sua margem, que fica na periferia, e que, no entanto, ao expressar suas dores, interpreta o preço pago pelos “normais” para nela se manterem. Os testemunhos dos pacientes, ao longo do filme, ecoa em nós algo provindo de zonas de medo, fragilidades e decrepitudes, que em geral ignoramos e preferimos evitar.

Averroès, Rosa Parks e Esquirol, são nomes que marcaram a História em épocas e lugares diferentes, são figuras de exceção na história do pensamento devido a suas ações. Há uma antiga tradição na psiquiatria em homenagear nomeando os serviços com o nome de personagens que contribuíram para a evolução de seu exercício: Freud, Melaine Klein, Pinel, sem esquecer das afinidades desta mesma prática com as artes, donde  Vivaldi, Camille Claudel, Artaud.   

Por isso, antes de aguçar no leitor o desejo de assistir ao filme de Philibert, valem algumas considerações sobre as implicações relativas ao ato de nomear. Sejamos incisivos: o contorno e a existência de um objeto depende em grande parte da dita nominação. Mais ainda, o nome garante sua permanência dando existência também, em sua ausência, a quem nele pensa. Esta perenidade simbólica pode ser lida numa formulação lapidária do psicanalista Jacques Lacan em que diz “O nome é o tempo do objeto”. Exemplo banal: não nasci respondendo pelo meu nome; fui chamado várias vezes pelos que cuidavam de mim antes de poder responder como Alfredo. Desde então, estou em condições de identificar o lugar de onde emana toda fala que me é endereçada, e à qual devo ou posso responder, recusando ou não o(s) outro(s); trata-se aí de um processo de humanização complexo do qual também dependo para me sentir reconhecido junto ao outro, ao instaurar diferentes formas de relações, digamos, objetais. 

Mas aqui, ressaltemos um outro aspecto relativo às nominações, ao interesse que pode estar em jogo quando nomeamos,  que traz a marca e a cultura de cada época. A este respeito, a psiquiatria é uma boa ilustração. Há vinte anos quando comecei a trabalhar no serviço de psiquiatria, no qual exerço meu trabalho ainda hoje, a unidade de internamento chamava-se Jacques Lacan. Porém os tempos mudaram. O serviço público regido cada vez mais pela aparelhagem tecnocrática estatal que programa sua gestão com categorias ideológicas neoliberais, nomeia numerando. Por isso, há poucos anos, a unidade Jacques Lacan transformou-se em unidade 5. O número tomou o lugar do nome. O 5 só indica que há uma sequência das unidades terapêuticas que precedem, como a 1, a 2, etc. Uma tal enumeração informa unicamente, de um ponto de vista administrativo, por exemplo, que uma não é a outra. Legal. Mas ela evacua a tradição na qual o psiquiatra Lacan nasceu, se inscreveu e a reivindicou, e nesta esteira, os que aí trabalham e orientam sua prática; Lacan, ou qualquer um, nunca é Adão e Eva de si mesmo, surgido por autogênese, mas se inscreve em uma história que o precede, que é também a da psicanálise.    

Ora, assiste-se a um tal higienismo linguístico também nas próprias categorias diagnósticas psiquiátricas. Existe uma orientação psiquiátrica biologizante de poucas décadas que, não por acaso, classifica suas categorias pelo agrupamento de letras, os acrônimos: TDAH, TSA, TND, HPI, etc. Outrora, sobretudo na tradição  clínica francesa, contrariamente à alemã que desde muito cedo criou neologismos – paranoia, esquizofrenia, autismo – as nominações diagnósticas informavam algo do vivido do paciente: delírio de grandeza, de perseguição, das negações, etc. Hoje, elas são consideradas como estigmatizantes. Porém, nos meandros das boas intenções em evitar a estigmatização, infiltrou-se uma ideologia em que, paradoxalmente, patologizaram-se formas de tristezas contingentes à vida causadas por luto ou separação, formas variadas de desamparo e ansiedades, alargando o leque da população diagnosticada e medicada.

Se a dita ideologia orquestrada por interesses financeiros, sobretudo os da indústria farmacêutica, soube eufemizar com astúcia o registro da patologia graças ao emprego dos vários acrônimos, ela facilitou, por outro lado, a patologização real dos afetos consubstancias à vida, de modo que, cada vez mais, recebemos nas instituições e consultórios pessoas que percebem e manifestam seus sofrimentos, seus dramas existenciais, identificando-os aos ditos acrônimos. Devemos estar alerta sobre o reducionismo subjetivo que se opera na vida daqueles que encontram “afinidades” entre seus sofrimentos e tais designações “acronímicas”. Se Alfredo Gil é portador de TND, como fulano, ciclano e beltrano, ele não pode esquecer que seu TND lhe pertence, não é idêntico aos outros três. Caso contrário, algo de essencial do ser se perde para aquele que diz portar o T-N-D. O essencial da “palavra que engaja”, como diz Albert Camus, se perde, assim, em detrimento dos números e dos acrônimos, e com ele apaga-se a terapêutica de apaziguar a dor com dignidade e intimidade, além das possibilidades de expressão criativa.   

Os filmes de Philibert – lembrando de dois outros em que a loucura e as instituições que dela se ocupam estão no centro do seu trabalho – tiram sua força da atenção dada à fala do paciente, ao valor do silêncio em presença do seu interlocutor, à escuta da equipe, daquele que toma a palavra ou que observa. 

(*) Alfredo Gil é psicanalista em Paris; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e da Association Lacanienne Internationale (ALI). E-mail: [email protected]  

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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