Opinião
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26 de março de 2024
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07:01

O Menino e a Garça (Coluna da APPOA)

"O Menino e a Garça" (Divulgação)

Gerson Smiech Pinho (*)

Durante a Segunda Guerra, em Tóquio, um incêndio em um hospital coloca fim à vida de uma mulher. Arrebatado pelo acontecimento, seu filho, Mahito, corre desesperadamente em direção às chamas, buscando, sem êxito, encontrar a mãe. Assim transcorre a cena inicial de “O Menino e a Garça”, o belíssimo e encantador filme mais recente de Hayao Miyazaki, vencedor do Oscar de melhor animação este ano, produzido pelo Studio Ghibli. 

A perda sofrida por Mahito, logo no começo da história, direciona o restante da narrativa, já que o vazio provocado pela falta da mãe embala o conjunto da ação do protagonista. Algum tempo depois do trágico evento, Mahito passa a habitar uma casa no campo, na companhia do pai e da madrasta, que também é sua tia, irmã da mãe morta. Nas cercanias da nova residência, ao entrar em uma torre abandonada enquanto perseguia uma garça, o menino mergulha em um universo fantástico, repleto de personagens estranhos e elementos insólitos, numa atmosfera similar à de outros filmes de Miyazaki, como “A Viagem de Chihiro” e “O Castelo Animado”. 

O percurso de Mahito por este território surreal é concomitante ao luto pela perda da mãe, vivido naquele momento. Como nos sonhos que temos à noite, o protagonista experimenta o cruzamento de diferentes tempos, numa travessia em que passado e presente se mesclam, na confluência de distintas dimensões da vida.

Se a morte de uma pessoa querida é um evento de gradual elaboração, certas circunstâncias podem tornar sua assimilação bem mais difícil e trabalhosa. É o caso das guerras ou outras situações de violência extrema, que circundam o não-sentido, costeando as margens do irrepresentável. Diante da brutalidade, o sonho, a ficção e a fantasia irrompem como espaços que permitem sobreviver psiquicamente. Possibilitam à subjetividade não se apagar frente ao desamparo.

A espantosa e árdua jornada de Mahito através de um espaço excêntrico, cujas feições são tipicamente oníricas, alude não somente aos caminhos trilhados a partir da perda da mãe. Evoca também seu próprio destino, em um mundo atravessado pelos horrores da guerra e pela ameaça iminente de morte. 

Ainda que a morte seja um evento natural e incontestável, atravessamos boa parte de nossas vidas ignorando a ideia de nossa própria morte, acalentando uma espécie de fantasia de imortalidade. Mas, como afirma Freud em seu notável texto “Considerações atuais sobre a guerra e a morte” (1915), a experiência da guerra não permite negar ou esquecer da provisoriedade da vida e de nosso destino irrevogável. Como se, a todo instante, fossemos lembrados da morte que bate à porta.

“O Menino e a Garça” é um filme sobre a travessia do final da infância, vivida em meio à guerra e à presentificação da morte que a acompanha. Ainda que retrate a guerra de outros tempos, o filme não deixa de evocar as guerras que vivemos atualmente – assim como as tantas vidas e infâncias interrompidas ou dilaceradas por elas.

(*) Psicanalista, membro da APPOA e da equipe do Centro Lydia Coriat

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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