Filipe Rosa (*)
Desde 2016, a Consultoria em causas e ESG (CAUSE), em parceria com o Instituto de Pesquisa IDEIA, realizam uma pesquisa denominada “Palavra do Ano Brasil”. Um grupo de especialistas convidados pela CAUSE elege sete palavras que podem definir o ano para os brasileiros. Em seguida, são entrevistados por telefone aproximadamente 1.500 pessoas de todas as regiões e classes sociais do país. Entre as sete palavras, o entrevistado precisa escolher uma que em sua opinião mais represente o que foi vivido no Brasil naquele ano. Em 2023, a palavra mais votada foi “mudança climática” (CAUSE, 2023). E não é à toa. Afinal, 2023 foi muito marcado pela emergência da crise climática no mundo. Em fevereiro, o Chile enfrentou grandes incêndios nas suas florestas, assim como o Canadá e a Grécia. Em julho, ondas fortes de calor atingiram os Estados Unidos e Europa, que tiveram o verão mais quente já registrado. Secas extremas no norte do Brasil, grandes temporais no litoral norte de São Paulo. Além das ondas de calor, que em algumas regiões do país atingiram sensação térmica de 60 graus em setembro, novembro e dezembro (INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS, 2023).
É impossível, no entanto, falar dos eventos climáticos de 2023 sem citar o nosso estado – Rio Grande do Sul. De junho a outubro, vivenciamos uma sequência inédita de 11 ciclones extratropicais (WIKIPEDIA, 2023), gerando grandes enchentes na capital gaúcha, na região metropolitana e, principalmente, nas cidades situadas no Vale do Taquari, como: Muçum, Roca Sales, Estrela, Encantado, Lajeado, Ibiraiaras, entre outras (SUL21, 2023). Em novembro, Porto Alegre totalizou 325,1 milímetros de precipitação de chuva. Foi o novembro mais chuvoso desde 1916 (INMET, 2023). Além disso, vivenciamos o terceiro inverno mais quente da história desde 1961 e diversas ondas de calor, que tiveram seu auge em dezembro com temperaturas máximas de 40 graus em quase todo território gaúcho, incluindo a região da serra (BRASIL DE FATO, 2023).
As consequências desses eventos climáticos foram diversas. Para se ter uma dimensão do problema: em setembro, um dos onze ciclones extratropicais que ocorreram ao longo do ano foi suficiente para resultar na morte de quarenta e duas pessoas, além de quarenta e seis desaparecidos e cento e cinqüenta mil pessoas afetadas pelas chuvas (PODER360, 2023).
Diante deste cenário catastrófico vivido pelos gaúchos em 2023, podemos nos perguntar: que evento climático que propiciou esta inédita quantidade de ciclones e volume de chuva? Trata-se de um evento estritamente meteorológico ou com componentes sociais? É possível caracterizar os ciclones extratropicais e as enchentes no RS como desastres naturais ou como problemas sócio-ambientais?
A resposta a estas perguntas se modifica a depender da lente que estamos usando para interpretar o fenômeno. No contexto deste trabalho, creio que existam três caminhos de interpretação. O primeiro se resume a uma visão meramente biofísica do ocorrido, que chamaremos “Lente biofísica”. Os outros dois caminhos buscam conectar as ciências exatas e as humanas, compreendendo os fenômenos ambientais em sua totalidade. O que vai diferenciar estes dois caminhos, no entanto, são seus princípios epistemológicos, que serão explicados mais a frente. Nos basta, por enquanto, dizer que um dos caminhos segue o realismo e o outro o construcionismo (GUIVANT, 2002).
Antes de adentrar nas diferenças, é preciso se debruçar sobre os consensos entre estas três lentes analíticas quando nos referimos aos eventos climáticos de 2023 no Rio Grande do Sul. O consenso está muito mais relacionado às conseqüências imediatas dos eventos ocorridos do que nas causas e conseqüências futuras. Nesse sentido, é um fato consumado que os ciclones extratropicais e as enchentes atingiram milhares de pessoas no estado, causando mortes, desaparecimentos e perdas materiais irreparáveis. Agora, quando adentramos nas causas dos ciclones e enchentes as diferenças começam a aparecer.
Analisando os eventos climáticos pela lente biofísica, é possível concluir que o surgimento desta quantidade inédita de ciclones e enchentes está relacionado meramente a um evento climático comum chamado “Complexo Convectivo de Mesoescala”. Trata se de um grande conjunto de nuvens em formatos circulares e muito carregadas que produzem um aglomerado de tempestades, que se impulsionam mutuamente, gerando grandes volumes de chuva e vento (O GLOBO, 2023). Ou se pode dizer também que o surgimento desta quantidade inédita de ciclones e enchentes está relacionado ao fenômeno climático natural chamado El Niño, que se caracteriza pelo aumento da temperatura do oceano pacífico e gera na América do Sul períodos de muito calor e chuva. Estas explicações meramente biofísicas foram utilizadas por parte considerável
da grande mídia tradicional para explicar o que ocorreu no Rio Grande do Sul em 2023 (G1, 2023). Não à toa, o resultado político desta análise é uma combinação de reconforto, imobilismo e despolitização, já que a conclusão mais provável que um leitor teria ao ler as matérias é: “bom, trata-se de eventos climáticos naturais e passageiros. Após este período, será possível seguir em frente e retomar a normalidade”.
Neste contexto, o que as outras duas lentes – realista e construcionista – teriam a oferecer de diferente a este mesmo leitor em relação à explicação biofísica? Uma análise interdisciplinar! Ocorre que as análises meramente biofísicas são meias verdades, justamente porque não explicam o fenômeno em sua totalidade. E não o fazem, justamente porque não levam em consideração o fator social que esta presente nos eventos climáticos. Sozinho, o El Nino não teria sido capaz de provocar os ciclones extratropicais e as chuvas na freqüência e intensidade que vivenciamos aqui no estado em 2023. É o que nos diz Francisco Aquino, professor de climatologia do departamento de geografia da UFRGS: “a mudança climática favorece eventos extremos e o El Nino os alavanca” (GZH, 2023). A mudança climática, a que Aquino se refere, diz respeito a mudanças globais nos padrões de comportamento do clima, que são fruto do aumento sistemático da emissão de gás carbônico na atmosfera. Emissão esta produto da ação humana. Este aumento da emissão de gás carbônico aumenta a quantidade de calor presente na atmosfera, o que, por sua vez, acelera e intensifica fenômenos climáticos que antes já ocorriam, como o El Niño.
Assumir que nos últimos tempos a ação humana se tornou uma força geológica é fundamental. E diversos estudiosos já apontam para este fato. Creio que o maior resultado científico destes estudos seja a construção do termo Antropoceno. Diz respeito à época geológica em que o planeta terra está vivendo atualmente. Diferencia-se das outras épocas justamente pelo impacto que a ação humana gerou no desenvolvimento geológico da terra (TEMAS, 2021). Entretanto, é fundamental neste debate nos perguntarmos: de que “ação humana” estamos falando? Do conjunto de ações isoladas de cada gaúcho em seu dia a dia ou dos impactos sócio-ambientais causados pela agroindústria no estado? No final de 2023, o pampa, bioma típico do Rio Grande do Sul, já contava com mais áreas modificadas pela “ação humana” do que vegetação nativa. O que ocorre nestas áreas modificadas nada mais é do que o desmatamento da vegetação nativa e a transformação da região em lavouras para a agricultura. O resultado desta empreitada é o aumento colossal de emissão de gás carbônico na atmosfera (SUL21, 2023). Sim, aquele mesmo gás já citado que aumenta a quantidade de calor presente na atmosfera e que alavanca fenômenos como o El niño.
Neste caso bastante emblemático, não se pode falar em uma ação humana em abstrato, como se pretende o conceito de Antropoceno. Trata-se da ação de grandes empresas do agronegócio gaúcho, pautadas por um modelo econômico que depende objetivamente da expansão das plantações para se perpetuar. O irônico é que o capital da agroindústria gaúcha está com problemas para se reproduzir em função dos problemas ambientais gerados por sua própria atuação: o desmatamento da vegetação nativa atinge zonas de nascentes de água, o que impede a irrigação da lavoura construída no local desmatado (SUL21, 2023). Descobrir o impacto do fator social nas mudanças climáticas nos faz entender um pouco mais porque a mídia tradicional, financiada pelo agronegócio brasileiro, insiste em reduzir as enchentes e os ciclones a um fenômeno biofísico.
Bom, de algo já estamos certos: considerar os ciclones e as enchentes que ocorreram no Rio Grande do Sul em 2023 simplesmente como “desastres naturais” é uma lente de análise limitada. O que as outras duas lentes de análise – realista e construcionista – nos dizem? Poderíamos, a partir dos dados levantados, dizer que os ciclones e as enchentes são “problemas sócio-ambientais”? Sim e não. E aqui finalmente explico as diferenças epistemológicas destas duas lentes analíticas. Obviamente, é consenso para os autores de ambas as perspectivas que a “ação humana”
– ou a ação de grandes empresas – é a causa das mudanças climáticas e está impactando objetivamente a vida no planeta. O que as diferencia, no entanto, é o foco analítico em torno dessas mudanças.
A lente realista está mais focada em entender o impacto do fator social na transformação do clima e como esta transformação esta impactando a perpetuação da vida humana e não-humana (GUIVANT, 2002) Importante lembrar que esta análise não pensa a “vida humana” em abstrato. Se o mundo capitalista é fundamentado na contradição capital-trabalho (MARX, 1980), ou seja, se é fundado na desigualdade, os efeitos das mudanças climáticas também serão sentidos de forma desigual, à depender de sua classe, raça, gênero e região. A lente construcionista, por outro lado, sabe dos efeitos objetivos, mas está muito mais interessada em compreender como que estes efeitos objetivos das mudanças climáticas estão sendo significados e definidos por quem os está vivenciando (GUIVANT, 2002).
Nesse sentido, para o realismo, os ciclones extratropicais e as enchentes que ocorreram em 2023 no Rio Grande do Sul são inegavelmente um problema sócio ambiental, independentemente de como os gaúchos estão significando e definindo os ocorridos. O que importa aqui é a existência objetiva do fenômeno. Já para o construcionismo, os ciclones extratropicais e as enchentes que ocorreram em 2023 no Rio Grande do Sul só podem ser considerados um problema sócio-ambiental caso sejam socialmente reconhecidos pela sociedade gaúcha como um. O que importa aqui é como um evento climático está sendo socialmente significado. Um problema sócio-ambiental, portanto, seria fruto de uma construção social.
As duas perspectivas são interessantes e relevantes. Creio que se complementam. De nada adianta reconhecer a existência de um problema sócio ambiental e buscar oferecer uma solução cientificista e burocrática, ignorando a maneira como a população tem significado o ocorrido. Da mesma forma, de nada adianta ignorar a existência objetiva do problema sócio-ambiental simplesmente pelo fato de ele não ser reconhecido enquanto tal pela população. É no equilíbrio das duas lentes que encontramos caminhos. Quanto aos eventos climáticos ocorridos no estado em 2023, O que me parece estar em jogo agora é: como que os gaúchos tem significado os ciclones e as enchentes de 2023? Como um desastre natural ou como um problema sócio ambiental? A partir disso, que estratégias os intelectuais, partidos, sindicatos e movimentos sociais do estado podem tomar para politizar o debate público em torno do ocorrido? Esta última pergunta é fundamental. Afinal, não sejamos ingênuos. A construção social de um problema sócio-ambiental não ocorre longe das estruturas de poder da sociedade. Como vimos anteriormente, o agronegócio brasileiro, junto com a mídia tradicional por ele financiada, não tem interesse na politização do debate, já que são os principais responsáveis no Brasil pela emissão de gás carbônico na atmosfera (CORREIO BRAZILIENSE, 2023).
Para que os ciclones e as enchentes de 2023 no Rio Grande do Sul sejam reconhecidos pelos gaúchos como um problema sócio-ambiental objetivo, é necessária a existência de uma força política atuante que tencione o debate. Utilizando-nos da sociologia dos problemas ambientais, corrente teórico-metodológica mais construcionista, é possível dizer que esta força política capaz de tencionar o debate depende de seis pré-requisitos (HANNIGAN ; BURNETT, 2009): 1- existência de autoridades científicas que alertem para a existência objetiva do problema, como é o caso de Francisco Aquino, professor de climatologia do departamento de geografia da UFRGS, que citamos anteriormente. 2- A existência de popularizadores do debate científico acerca do tema e 3- uma mídia atuante para inflar o debate público, como é o caso do jornal Sul21, o Matinal e a Zero Hora no caso específico da matéria de Francisco Aquino, de forma bastante atípica. 4- Uma dramatização simbólica do problema, que sensibilize a população – no caso dos ciclones e enchentes, creio que a dramatização se deu pelas próprias fotos e vídeos feitos nos locais atingidos. 5- Incentivos econômicos para o combate das causas e mitigar os efeitos do problema e 6- lideranças institucionais que garantam política e juridicamente o enfrentamento das causas e efeitos do problema sócio-ambiental.
Quanto ao quinto pré-requisito: em novembro de 2023, durante as discussões sobre as diretrizes orçamentárias para 2024, o governador Eduardo Leite destinou uma fatia de 115 milhões de reais do orçamento público para o enfrentamento dos eventos climáticos em 2024. Apesar de, à primeira vista, parecer uma quantidade considerável, este valor representa apenas 0,2% do orçamento total que o Rio Grande do Sul terá a sua disposição (80 bilhões de reais) (SUL21, 2023). Quanto ao sexto pré-requisito: apesar de na eleição de 2022 a população do Rio Grande do Sul ter elegido mais deputados estaduais progressistas, a base governista, liderada pelo PSDB de Eduardo Leite, segue com maioria. Base governista esta que é aliada histórica do agronegócio no estado (SUL21, 2021).
Diante do cenário apresentado, é fundamental nos perguntarmos: neste momento, temos uma correlação de forças política, econômica e midiática favorável a transformação dos eventos climáticos de 2023 no RS em um problema sócio-ambiental reconhecido socialmente como tal?
Creio ser esta uma questão central para o momento. Afinal, o nível de politização deste debate é o que vai determinar, em grande medida, o peso da mobilização gaúcha no combate as causas e conseqüências das mudanças climáticas no estado. Penso que existem, em resumo, três caminhos de combate as causas e consequências, que se diferenciam pelo nível de politização. Um primeiro, menos politizado e bastante associado à lente biofísica de análise. Se os ciclones e as enchentes são meramente desastres naturais ocasionais, basta atuarmos para mitigar as conseqüências imediatas e prepararmos alguma estrutura emergencial mínima para futuras catástrofes. Isto é o que tem feito, de forma bastante tímida até então, o governador Eduardo Leite e o prefeito de Porto Alegre Sebastião Melo (CNN BRASIL, 2024). Um segundo caminho de combate as causas e consequências das mudanças climáticas, mais politizado, já compreende que os ciclones e as enchentes de 2023 no RS são fruto em grande parte da “ação humana”. Neste caminho, entretanto, a falta de questionamento a respeito de qual “ação humana” estamos falando, nos distancia das causas do fenômeno e nos limitaria a, por exemplo, realizar um planejamento urbano de longo prazo para lidar com as mudanças climáticas. Algo fundamental, mas que se limita ao gerenciamento das conseqüências e não na identificação da causa e sua superação.
E aqui entra o terceiro caminho, mais politizado: se, como vimos, o capital depende da sua constante expansão para se reproduzir (MARX, 1980), o agronegócio gaúcho não vai parar de transformar o pampa em lavoura para agricultura. Consequentemente, a emissão de gás carbônico na atmosfera gaúcha se manterá ou aumentará, gerando o aumento da frequência e intensidade dos fenômenos climáticos no estado. É possível, inclusive, que não haja planejamento urbano capaz de lidar com o que está por vir. Daí a importância de focar nas causas: não se trata de somente educar a “ação humana”. Trata-se da construção de um plano de transição energética, capaz de superar o modo de produção e racionalidade capitalista. Para esta superação, torna-se imprescindível a mobilização e politização do debate público acerca dos problemas sócio-ambientais que assolam não só o Rio Grande do Sul, mas o mundo.
Para isto, é preciso que perspectivas realistas e construcionistas andem juntas, identificando os problemas sócio-ambientais objetivos e lutando para que os problemas identificados sejam socialmente reconhecidos enquanto tais.
BIBLIOGRAFIA:
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(*) Licenciado em Ciências Sociais pela UFRGS
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