Opinião
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14 de fevereiro de 2024
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12:36

Uma nova etapa da história da substituição de trabalho por capital (por Flavio Fligenspan)

Imagem: Pixabay
Imagem: Pixabay

Flavio Fligenspan (*)

A substituição de trabalho por capital é um tema clássico da história do desenvolvimento capitalista, sempre associado à concorrência, aos avanços técnicos e à acumulação de capital e o crédito. É só na vigência da combinação destes elementos que se viabiliza e há motivação para a substituição; sem qualquer um deles, não há sentido ou condições para mudar o status da produção e da distribuição.

É possível analisar esse fenômeno sob vários enfoques, mas um deles, sempre de grande repercussão, é o impacto sobre o mercado de trabalho. A introdução de novas tecnologias e de novos processos produtivos, associadas ao incremento de capital, inevitavelmente vai dispensar mão de obra de atividades tradicionais e causar problemas sociais. Várias questões derivam deste movimento, tornando difícil medir a priori qual o resultado final de forças opostas de destruição e criação de vagas.

Sim, destruição e criação, pois certamente haverá perda de postos de trabalho nas atividades antes intensivas em mão de obra, mas haverá novos postos associados à introdução da nova tecnologia. E ainda dever-se-iam medir os efeitos indiretos da mudança, como a repercussão em outros setores vinculados ao que implementa a substituição – para a frente e para trás na cadeia produtiva – e os efeitos mais amplos sobre o sistema econômico como um todo, por exemplo, no caso provável em que ocorre um aumento do PIB em função do avanço técnico, e isto pode criar novos postos de trabalho.

A consequência mais direta e mais fácil de observar é a perda de empregos representativos do paradigma anterior; seu contraponto é a criação de novas vagas para os trabalhadores adequados ao novo modo de produzir. Ocorre que os trabalhadores que saem são em número maior e menos qualificados que os novos, gerando um saldo negativo de número de vagas, o que obviamente não se resolve com a requalificação do pessoal, até porque há normalmente uma barreira de aprendizado importante nestes casos. Boa parte dos trabalhadores dispensados fica alijada do mercado e vai prover suas necessidades com tarefas de menor rendimento, via de regra com rebaixamento de condições sociais e trabalho precarizado, sendo a passagem para a informalidade um símbolo do novo status.

Existem abundantes registros históricos do que se tratou até aqui. Contudo, estamos diante de uma novidade, visto que até há pouco os casos mais frequentes de substituição de trabalho por capital estavam vinculados à Indústria de transformação e sua associação com o conceito de economia de escala. Se podia mesmo estender a ideia da substituição para outras atividades, como a Agropecuária extensiva, com o emprego cada vez maior de equipamentos computadorizados, ou a indústria extrativa, mas a ideia em geral é a mesma – sempre presente com força a noção de ganhos de escala, e sempre gerando os mesmos problemas.

A novidade está no fato de que agora a substituição avança para o setor de Serviços, em especial os de alta qualificação. O domínio de novas técnicas de tratamento de grandes bases de dados, combinado com o desenvolvimento de potentes algoritmos (software) e, mais recentemente, com a entrada em cena da Inteligência artificial, abre uma nova frente na história da substituição. Não se trata mais da dispensa da mão humana na atividade fabril em troca da máquina, mais segura, mais precisa e mais econômica; não se trata mais da dispensa de pessoal de baixa escolaridade e baixa produtividade. Onde a mão humana ainda será necessária por muito tempo, como nos Serviços pessoais de baixa qualificação (garçons, cozinheiros, camareiras, cabeleireiros), a supressão de trabalhadores não é central.

Agora o que está em jogo é uma nova forma de resolver problemas e produzir resultados na vasta área dos Serviços qualificados, com mão de obra cara e bem treinada. Para uma ampla gama de serviços, desde a medicina até a área das finanças, é compensadora a mudança para o capital. Por exemplo, o diagnóstico e a recomendação de tratamento de doenças são passíveis de substituição, assim como a recomendação do melhor equacionamento das questões patrimoniais e financeiras de uma família.

Daí derivam novos problemas relevantes para o desenvolvimento capitalista, até então não enfrentados nos episódios anteriores de substituição de trabalho por capital. Como vão se realocar os profissionais especializados que serão dispensados pelos novos processos produtivos? Com o inevitável rebaixamento de renda destes profissionais, como será suprida a demanda por bens e serviços típicos de classe média que antes era feita por eles?

Os setores impactados pela perda de poder aquisitivo destas pessoas são bem diferentes dos outrora atingidos. No passado, os trabalhadores da Indústria que perdiam seus empregos deixavam de comprar os bens típicos da cesta de consumo das famílias de renda baixa, como alimentação, vestuário e bebidas. Agora são consumidores de renda média e alta que deixarão de comprar automóveis e imóveis de valor elevado, por exemplo. Os impactos de redução de demanda e seus efeitos na economia como um todo são bem diferentes nos dois casos, agora maiores, visto que os encadeamentos (cadeias produtivas) dos setores citados como exemplos (automóveis e imóveis) são bem mais amplos que os de bens de consumo populares. Os efeitos desta mudança são difíceis de medir e, certamente, as respostas deste problema serão muito mais lentas do que o processo de substituição já em marcha. 

(*) Professor Aposentado do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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