Opinião
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14 de fevereiro de 2024
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16:50

O leilão do Cais Mauá e as vozes da sociedade (por Luciano Fedozzi)

Sergio Stein (centro), do consórcio Pulsa RS, bate o martelo no leilão do Cais Mauá ao lado do governador Leite e do prefeito Melo. Fotos: Mateus Raugust/PMPA
Sergio Stein (centro), do consórcio Pulsa RS, bate o martelo no leilão do Cais Mauá ao lado do governador Leite e do prefeito Melo. Fotos: Mateus Raugust/PMPA

Luciano Fedozzi (*)

O leilão de um só concorrente para o Cais Mauá ocorrido este mês, após uma tentativa vazia em 2022 e um adiamento da data prevista em 2023, a pedido de representantes do capital imobiliário, vem suscitando notícias e posicionamentos que não são inéditos, haja vista a conhecida história de inconsistências e aventuras público-privadas já ocorridas com a tentativa anterior de privatização do Cais Mauá.

As notícias vêm divulgando que se trata de investimentos da ordem de R$ 355 milhões de reais. Mas pouco é dito que este valor é um orçamento para os 30 anos da concessão, sendo grande parte desses recursos para o custeio da operação nos setores dos Armazéns e do Gasômetro, que visam dar rentabilidade à exploração econômica. Ou seja, segundo os planos para a concessão privada realizado pelo Consórcio Revitaliza, financiado pelo BNDES, este não é o total do investimento necessário à revitalização dos 12 armazéns tombados e seu entorno paisagístico. Os Armazéns requerem bem menos recursos, na ordem de R$ 152 milhões, incluindo a barreira contra cheias, conforme consta no estudo de viabilidade econômica.

Isto porque do total de investimentos previstos para os setores dos Armazéns e do Gasômetro (R$ 190 milhões) é preciso considerar que o maior orçamento (R$ 37.965 milhões) [1] é destinado à construção do shopping horizontal ao lado da Usina do Gasômetro, cuja única finalidade é gerar a rentabilidade para os arrematadores do “negócio do Cais”. Esta construção é totalmente desnecessária para a retomada do Cais do Porto, e em nada contribui para o usufruto daquele local privilegiado, apto a receber o convívio com o Guaíba por meio de um parque e outras atividades.

Com um cálculo simples, como demonstrou o Projeto alternativo Cais Cultural, elaborado por professores da UFRGS em conjunto com o Coletivo Cais Cultura Já [2], que reúne diversos setores da comunidade cultural da cidade, os recursos que poderiam advir da alienação do setor das Docas (uma concessão urbana admitida apenas por considerar a suposta carência de recursos estaduais), demonstra a total viabilidade da manutenção do caráter público e cultural do Cais do Porto, em especial dos Armazéns, que são patrimônio histórico da cidade.

Senão vejamos: a previsão inicial do valor do terreno das Docas pelo Consórcio e BNDES foi de R$ 93 milhões de reais. Ocorre que após a divulgação dessa avaliação foi sancionado pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre o “Programa de Reabilitação Do Centro Histórico”, futura lei complementar LC 930/2021, que ampliou o potencial de densidades do Centro permitindo aumentar a verticalização de 45 metros para 100 metros. Com esse ganho óbvio de mais valia urbana permitido pela lei, a ser apropriada pelo capital imobiliário que vai assumir a área, foi realizada uma representação junto ao MPC para aumentar o valor do terreno e proteger o bem a ser alienado. Assim, o MPC determinou a revisão da avaliação, que foi elevada de R$ 94 milhões para R$ 144 milhões.

A ação de coletivos, parlamentares [3] e acadêmicos preocupados com a defesa do interesse público, validada por um Ministério Público de Contas republicano e eficiente, gerou nada menos do que R$ 50 milhões a mais daquele terreno público do Cais. É importante lembrar que apesar disto, tem sido rotineira a tentativa de setores da mídia hegemônica no RS em classificar pejorativamente as ações de controle da sociedade sobre os bens do seu patrimônio.

Dessa forma, considerando o novo valor das Docas (R$ 144 milhões) e o orçamento para a revitalização dos Armazéns e do setor do Gasômetro (R$ 152 milhões), fica comprovado que a revitalização é plenamente viável, a partir da captação de R$ 8 milhões nas fontes de fomento cultural, públicas e privadas.  Fica claro, portanto, que se o problema é a falta de recursos, conforme alegado pelo governador, a solução adotada pelo Governo do Estado e a Prefeitura é uma opção pela privatização, não uma necessidade imposta pelas condições.

A política adotada implicará em perdas inegáveis ao interesse público e ao acesso universal de qualquer renda e estrato social na área do Cais, porque os capitais privados envolvidos ganham duas vezes: com a comercialização imobiliária da área das Docas e a exploração econômica dos Armazéns e do Gasômetro.

Na ideia alternativa oferecida gratuitamente por professores da UFRGS e o Coletivo Cais Cultural Já, os setores dos Armazéns e do Gasômetro são preservados, restaurados e colocados à disposição da população. O Projeto prevê ainda que a gestão dos Armazéns seja com a participação da sociedade civil e cultural da cidade e do estado visando diferenciar o projeto de outros conhecidos casos de elitização.

Sobre as informações acerca das empresas que arremataram o Cais no leilão atual, não há novidades quanto à precariedade anunciada, a não ser o novo papel que o grupo RBS tenta desempenhar agora. É bom lembrar que durante os quase dez anos em que a iniciativa privada esteve à frente da malfadada privatização, diversos atores civis, entidades, movimentos sociais, órgãos de mídia independente e acadêmicos, fizeram incansáveis denúncias sobre a falta de capacidade de toda ordem dos então “investidores” para levar adiante um projeto inadequado, para dizer o mínimo das aberrações urbanísticas que foram propostas.

Sempre foi argumentado, por exemplo, a inexistência da garantia do Consórcio Cais Mauá do Brasil de R$ 400 milhões exigida pelo Edital. Foi necessário a Polícia Federal agir na operação Gatekeeper para encerrar a situação em 2019. Durante esses anos, não vimos o grupo midiático hegemônico do RS se somar às vozes do interesse público. Ao contrário, sobraram acusações contra os “caranguejos da cidade”, aqueles que não querem o “progresso” do dinheiro a qualquer custo. Não é de se estranhar esta posição interessada por seus laços com o empreendimento existente hoje no Cais arranjado após o fracasso anterior.

Pois bem, agora é de se saudar que, diante da suspeita opacidade e fragilidade financeira das empresas vencedoras do leilão, mais vozes estejam se somando ao necessário controle da sociedade para que novas aventuras não vinguem na segunda tentativa de privatização do Cais Mauá. Apesar de tudo, a preservação dos Armazéns A e B e Pórtico, que deverão ficar sob jurisdição pública e social para fins culturais, foi uma conquista do movimento de defesa do Cais Mauá, que deverá ser efetivada pela perseverança dos que se somaram a essa luta.

Notas

[1] Cf. Tabela 18, “Relatório do Plano de Desestatização. Projeto de Estruturação Imobiliária para Revitalização do Cais Mauá. Consórcio Revitaliza.

[2] CAIS CULTURAL. DIRETRIZES GERAIS. Proposta de Ocupação do Cais do Porto de Porto Alegre. Projeto de Extensão Ocupação Cais do Porto Cultural. UFRGS, nov. 2021.

[3] A deputada Sofia Cavedon (PT) e o então vereador Leonel Radde (PT), hoje também na Assembleia Legislativa do RS, criaram Frentes Parlamentares em Defesa do Cais Mauá, somando-se ao diálogo institucional e às ações sociais em torno do tema do Cais do Porto.

(*) Professor Titular de Sociologia da UFRGS, pesquisador do Observatório das Metrópoles

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


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