Opinião
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27 de fevereiro de 2024
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10:22

“E se…?” Infinitos destinos particulares (Coluna da APPOA)

Foto: Gilson Mafacioli/Arquivo pessoal
Foto: Gilson Mafacioli/Arquivo pessoal

Volnei Antonio Dassoler (*)

As dúvidas sobre as escolhas que fizemos durante a vida não elegem dia, horário nem lugar para aparecer e perturbar nosso sossego e nossas frágeis certezas. Uma música, um filme, uma perda, um adoecimento, uma decepção amorosa e mesmo uma imagem aleatória são potencialmente capazes de trazer à superfície da consciência uma pequena e perturbadora pergunta que basta para abrir a virtualidade de uma outra realidade que poderia ter se realizado nesta mesma vida: “E se…?” “E se eu tivesse dito ‘não’?”; “E se eu tivesse respondido à mensagem?”; “E se eu não tivesse pedido demissão?”; “E se eu tivesse mudado de cidade?”; “E se eu (não) tivesse filhos?”. Carregamos ao longo da vida muitas interrogações que fertilizam o pensamento e a imaginação com possibilidades existenciais distintas daquelas que vivemos. Por vezes, alguns desses “se” extrapolam seu prosaico aparecimento para dar lugar a um impasse doloroso e gerador de “crise existencial” que nos interpela sobre os graus de responsabilidade e liberdade que permeiam nossos atos e seus efeitos. Em outras palavras, são momentos em que nos vemos confrontados com a nossa tomada de posição diante do mundo e de suas demandas.

Vidas passadas (Past lives), filme da sul-coreana Celine Song, apresenta uma trama sensível que conta os desdobramentos de um romance infanto-juvenil – ainda em germinação – interrompido pela decisão de emigrar da família da jovem. Mais de duas décadas depois e tendo trilhado caminhos distintos de vida, os protagonistas (Nora e Hae Sung) se reencontram. Em vez de assistirmos à narração de uma história romântica sobre o amor perdido no passado, no filme nos deparamos com as vicissitudes e os destinos dos afetos, das lembranças e dos desejos sonhados e suspensos por conta da separação precoce dos protagonistas. A narrativa concede espaço às palavras naquilo que é possível de ser dito; mas é quando elas se tornam secundárias ou mesmo quando saem de cena deixando em evidência o silêncio – naquilo que se escolhe não dizer ou no que não se consegue articular pela via do sentido e da representação –, que conseguimos ler/ver a estrutura e a beleza tocante de uma poesia visual, composição condensada do que foi vivido, do que poderia ter sido e ficou no passado, do que poderia ser vivido agora e não será, do que está sendo vivido no presente – como satisfação e como falta – e do que deixará de ser vivido.

Tratada de maneira primorosamente delicada, essa tensão se manifesta em diversas cenas. Uma dessas tensões, em especial, já perto do final do filme, é destacada quando os dois protagonistas, postados frente à frente, despedem-se sem dizer nada. Espectadores envolvidos pelo que se passa na tela, somos capazes de sentir a angústia que os aproxima, movendo-os um em direção ao outro para, no mesmo instante, fazê-los parar. A cena recobre e desvela na mesma medida as múltiplas possibilidades de escolha desse momento: na sua hesitação, o reconhecimento da responsabilidade que ambos deverão assumir por qualquer ato que consumarem, não apenas pelo que sabem a respeito de si mesmos, mas fundamentalmente por aquilo que, sem saberem em sua plenitude, implica-os um em relação ao outro.

Na língua portuguesa, “destino” significa aquilo que “está escrito”, determinado (pela ordem divina, cósmica ou outra qualquer); mas o vocábulo também serve para designar o lugar ou rumo para o qual alguém pode se dirigir (o destino pode ser, inclusive, um vagar sem destino). Nesta modalidade, o destino subverte a força do escrito e se abre ao porvir.

Outro diálogo paradigmático acontece entre Nora e seu companheiro estadunidense quando este conjectura acerca de realidades alternativas que poderiam ter acontecido caso fatores diversos tivessem se interposto no relacionamento entre eles (“e se…”; “e se…”), ao que ela responde: “não é assim que a vida funciona”. Ainda que, em algum momento – como nesta cena –, alguém bem-intencionado nos lembre que o “se” não existe concretamente, imaginar outras possibilidades de viver e inventar narrativas é um fenômeno humano que decorre da nossa própria condição de incompletude. Nesta concepção de sujeito, a falta é considerada de diferentes perspectivas, inclusive como motor do desejo.

Compreensivelmente, por sermos humanos, por vezes, cedemos ao fascínio da ilusão e gostamos de pensar que um olhar, uma palavra, um “não” ou um “sim” poderiam ter mudado o que nos aconteceu de infortúnio ou frustração: é quando ligamos aquele “e se…” para alguma coisa que supomos poderia ter ocorrido de maneira diversa. Esse é o momento em que questionamos o destino. Ainda que cada um de nós leia sua vida a partir dos efeitos de uma determinação (escrito/destino), a despeito da liberdade pessoal e do acaso, um resto de entendimento sobre os desígnios da existência nos escapa: o que fazer com nossos lutos ordinários como um desejo infantil irrealizado, um projeto adolescente abandonado, um amor impossível? Assim como no filme, viver também se traduz por deixar partir.

(*) Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Doutor em Psicologia Social e Institucional (UFRGS)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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