Opinião
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20 de fevereiro de 2024
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11:31

Do demônio e outros amores (Coluna da APPOA)

Foto: Lucia Serrano Pereira
Foto: Lucia Serrano Pereira

Lucia Serrano Pereira (*)

Fevereiro, leituras de férias, ou pelo menos de tempo um pouco mais aberto para pousar num livro ou outro, trechar seja literatura ou psicanálise, com o prazer dessa possibilidade de leituras que se sobrepõe e dialogam. Tecido variado e heterogêneo na textura, cor, espessuras e densidades. Viajando para a Colombia, um gosto: o de chegar a um país ou cidade lendo algum escritor do lugar. Dessa vez foi Gabriel García Márquez, colombiano de Aracataca, tão caro a todos nós, e que compôs junto com outros escritores o marco imaginário de todo um movimento artístico: o realismo mágico que brotou na América Latina início do séc. XX e que floresceu tomando força nas décadas de sessenta e setenta.

No início espécie de resposta à literatura fantástica europeia, mas adiante tomando força como reação ficcional contra as ditaduras nos nossos contextos. Ou seja,“local” só no sentido da singularidade que transporta seu chão para outra bandas; Gabo, como era chamado carinhosamente, atravessou fronteiras e alcançou  o mundo. 

Li García Márquez de forma muito intensa logo que fiz sua descoberta. Depois vamos fazendo outros trânsitos, conhecendo outras escritas, nos deslocando, como alguém que sai de casa ( essa foi uma das primeiras casas literária de apaixonamento) mas que guarda a referência valiosa e a memória do encanto. 

Aos vinte, Cem anos de solidão era o meu livro preferido, disparado, para além de todos os outros. Macondo, o pueblito que atravessa o tempo na sequência das vidas dos Buendias e que nos jogava em uma dimensão de sonho, com um tempo muito particular, circular, quase mítico, envolto em pó e terra batida.

No último tempo da frequentação mais direta de sua literatura (não faço ideia de quanto durou, mas a sensação é de que vivi muito a sua letra), O amor nos tempos do cólera despontou, incomparável. A história de Fermina e Florentino Arise, amor inaceitável pelo parâmetro familiar, social e político, quando eles, jovens, se apaixonam. Mas um amor que atravessa o tempo, adormecido, para já perto do final das suas vidas poderem por fim fazer o encontro.

Agora em Cartagena pudemos ver a casa de Fermina, locação para o filme lançado em 2007 (onde Javier Bardén fazia o papel de Florentino!). Faz parte das casas históricas da cidade, em uma rua composta por pequenos palacetes de arquitetura espanhola/andaluza, com os jardins, as trepadeiras de buganvilles, as palmeiras, o verde  que surge por todo o lado, respiros do sol caribenho. Parte de uma impressão difusa que se tem sobre a cidade, tem algo mouro que paira nas calles. Depois fui entender na conversa com um jovem historiador colombiano, que de fato o espanhol que se instalou desde mil quinhentos e pouco na fundação de Cartagena era o espanhol que vinha da Andaluzia, essa mescla que migra também para a América. 

Faz muito tempo que não voltava a García Márquez e seus livros, dessa vez já no avião da chegada vinha com O general e seu labirinto no kindle. Bolívar em seus últimos anos.

Mas o que me enlaçou na leitura foi a indicação do historiador quando fomos à Casa de Cultura Garcia Márquez ( onde estão depositadas as cinzas do escritor e de sua mulher). Ele nos recomendou a leitura de Del amor y otros demonios. “Pues se pasa  donde estamos”, ele disse. Logo ali, onde era o Convento de Santa Clara e agora é o Sofitel(?!).

Passamos na Ábaco, a livrariazinha que já estávamos frequentando desde a chegada, dessa vez para buscar o Del amor…

Abro o livro, tem uma nota de início. Primeiras páginas, essas assinadas pelo autor, como se fosse um prefácio, uma apresentação. Ele conta então que em outubro de quarenta e nove, na redação do jornal onde fazia suas primeiras matérias, o chefe da redação recebeu um telefonema com a informação de que estavam esvaziando as criptas funerárias do antigo convento de Santa Clara, e lhe pediu que desse uma volta por lá para ver se lhe ocorria algo.

O convento histórico das clarissas, que já há um século havia se convertido em hospital, ia ser vendido para construir em seu lugar um hotel de cinco estrelas.

Sua capela preciosa ja estava com o telhado destroçado, mas nas suas criptas permaneciam enterradas três gerações de bispos, de abadessas e de outras figuras ilustres da cidade. O primeiro passo era desocupar essas criptas, entregar os ossos a quem os reclamassem, e o que sobrasse jogar em uma fossa comum.

García Márquez diz que o que o chocou foi o primitivo da coisa. Um montinho de ossos com o nome em cima escrito em um papel, todos enfileirados. Os ossos mais ilustres eram retirados com mais cuidado para que se pudesse retirar as pedras preciosas das joias dos mortos. Assim que quanto mais importante, mais demorava. Ele cita mortos bem conhecidos. Até que  encontra a matéria para a notícia: uma lápide salta em pedaços ao primeiro golpe da picareta, e “uma cabeleira de um cobre intenso se derramou fora da cripta. O mestre de obras quis tirá-la completa com a ajuda de seus operários e quanto mais tiravam, mais larga e abundante parecia”. Saía de um crânio de menina. Se lia um nome sem sobrenome: Sierva María de todos los Angeles. A cabeleira media, estendida no chão, vinte e dois metros e onze centímetros. O mestre de obras explicou sem surpresa que o cabelo humano crescia um centímetro por mês até depois da morte, e que vinte e dois metros estava bem para duzentos anos. Para o autor isso evocou a história que sua avó contava a ele, criança. Que uma marquesinha de doze anos tinha uma cabeleira que arrastava como um véu de noiva, que tinha morrido pelo mal de raiva pela mordida de um cachorro, e era venerada pelos povos do Caribe por fazer muitos milagres. ‘“ La idea de que essa tumba pudiera ser la suya fue mi primera noticia de aquel dia, y el origen de este libro”.

E assim Gabriel García Marquez assina e situa: Cartagena de Índias, 1994.

O que é lúdico e incrível é a ficção já se metendo no que aparentemente consistia em uma “informação”. Cabeleira de vinte e dois metros que pula da tumba para a luz do dia? Nosso passaporte entre os dois mundos, o da “realidade” e o da ficção. Está estabelecida a ponte, e dali surge o livro, décadas depois.

Sierva Maria, marquesinha segregada no convento para “curar a raiva”. De qual mal? Ela não desenvolve a doença (dúvida que paira todo o tempo), mas acontece que aos doze anos falava em línguas estranhas – do yoruba ao congo, e do congo a mandinga. E cantava suas músicas, e vestia suas guias.  O vermelho e branco do amor e do sangue de Xangô, o vermelho e negro da vida e da morte de Exu, as sete contas de azul pálido de Yemanjá. Integrada ao pátio dos escravos, desde pequena, era ali que se sentia em casa. De onde vem isso ? Como extirpar o mal?

“Engendro do demônio” as freiras vão adensando o perigo, lendo cada movimento de Sierva como sinal, e o pai pede que ela seja exorcizada. O jovem padre que vem para o exorcismo  se enamora dela (sedução de Satanás?). Trama de amor e da dor das servidões que a literatura nos atualiza.

(*) Lucia Serrano Pereira é psicanalista, membro da APPOA.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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