Opinião
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29 de janeiro de 2024
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07:07

Nova Indústria Brasil: mais um ‘round’ no recorrente debate entre estado e mercado (por Flavio Fligenspan)

Lançamento do programa Nova Indústria Brasil (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
Lançamento do programa Nova Indústria Brasil (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Flavio Fligenspan (*)

O lançamento da política industrial do Governo Lula III, batizada de Nova Indústria Brasil (NIB), na semana passada ensejou mais um capítulo do debate sobre o grau de intervenção dos governos na economia. Este debate, na sua versão mais recente na história, vem desde a década de 1980, quando se lançaram as bases do processo atual de globalização, tanto na sua vertente financeira como na comercial e na esfera produtiva. Os arautos da globalização argumentavam que o mercado é o melhor alocador de recursos, representando a forma mais eficiente de decidir como produzir, onde produzir e, principalmente, como distribuir os ganhos das decisões anteriores.

As “velhas” alternativas de direcionamento estatal, através de políticas diversas, tanto no campo econômico como social, já teriam sido testadas e reprovadas, provavelmente a custos mais elevados e com alocações menos eficientes, como nos exemplos bem marcados no pós Segunda Guerra Mundial dos modelos de substituição de importações no caso dos países pobres, e de auge da construção e vigência dos estados de bem estar social, no caso dos desenvolvidos. Estes modelos teriam se mostrado falhos em vários pontos, promoveriam distorções de alocações e, nas suas piores versões, favoreceriam esquemas de corrupção.

Enfim, o mercado teria mostrado sua eficácia e eficiência superiores. Ou, dito de outra forma, os governos, ao escolherem caminhos de desenvolvimento e ao induzi-los por políticas públicas, atrapalhariam a “escolha natural” dos mercados, sempre melhor por definição. Ora, este até pode ser um argumento atrativo, mas não resiste à realidade. Seguir na linha de “deixar a natureza capitalista agir livremente que ela saberá determinar as melhores opções” não consegue evitar nem explicar as crises do capitalismo e muito menos consegue prover solução para elas sem a atuação firme e decisiva do ente “demoníaco”, o estado. É só lembrar quem foi chamado para resolver o problema criado pelo livre mercado na grande crise financeira de 2007/2008 e, novamente, na crise do Covid, apenas para ficar nos casos maiores e mais recentes.

Voltando ao Brasil e à NIB, vários analistas logo se apressaram a achar os problemas e defeitos da nova política, o que sempre é fácil de fazer. Afinal, grandes planos sempre deixam vários aspectos de fora e, claro, elegem alguns caminhos em detrimento de outros. Não é o caso aqui de entrar nos detalhes da NIB; o propósito desta pequena nota é explorar brevemente sua relação com o tema do grau de intervenção estatal. Como se sabe, a indústria nacional vem perdendo espaço no PIB há pelo menos 35 anos, no que ficou conhecido como processo de desindustrialização. Também se conhece a importância da indústria para o desenvolvimento de qualquer economia capitalista, assim como não se tem exemplo no mundo de economias pujantes, com indústrias fortes, que tenham chegado a tal status sem grande apoio estatal.

Ao contrário do discurso, o livre funcionamento das forças de mercado não oferece nenhuma garantia de boa alocação de recursos nem de ausência de crises sistêmicas. Pelo contrário, o sistema capitalista desregulado promove, naturalmente, concentração de mercado, má distribuição de renda, abandono dos mais frágeis – sejam as famílias mais carentes, sejam as pequenas empresas –, e gera crises enormes de tempos em tempos, para as quais ele não encontra solução. Sempre, nestes casos críticos, entra em ação a mão visível e redentora do estado, cuja atuação nestes momentos é reclamada pelos defensores ardentes do “eficiente funcionamento dos mercados”.

Pois bem, no momento do lançamento de uma política industrial moderna, muito semelhante, em linhas gerais, ao que se faz no mundo desenvolvido, os críticos colocam como um dos primeiros pontos do debate o fato de que a política representa uma intervenção estatal – mais uma vez, como em governos anteriores –, como que a direcionar as opções empresariais e, assim, atrapalhar a boa alocação dos mercados eficientes. Ora, governos têm diagnósticos e planos de ação, e são eleitos para implementá-los, o que significa fazer escolhas, eleger ações em detrimento de outras, com beneficiados e prejudicados, preferencialmente não ao nível individual, mas como grupos, sejam grupos de setores, de empresas, ou mesmo segmentos de renda dentro da sociedade.

A ausência de políticas públicas, aqui no caso a política industrial, significa deixar a decisão sobre os grandes projetos nacionais na mão do mercado, este mesmo ente concentrador, sem preocupação ou responsabilidade com distribuição, e gerador de crises. De onde vem a informação de que os mercados fazem escolhas qualitativamente superiores? Algum modelo teórico prova isto? A experiência histórica mostra isto?

Claro, não se está aqui afirmando que planos estatais são capazes de organizar uma economia de forma ampla e centralizada, o que também não se prova como melhor opção nem teoricamente nem pela experiência histórica. O funcionamento dos mercados oferece excelentes informações sobre preços e quantidades e sobre alocação de recursos, o que estimula diagnósticos e correções de rumos. O que se quer dizer é que o mercado cria distorções importantes para o desenvolvimento capitalista e que é legítima a presença do estado para formatar projetos e propor políticas para induzir o setor privado a aderir a tais projetos.

Nestes termos, subsídios creditícios e tributários, taxas de juros reduzidas, políticas de compras governamentais, incentivos à pesquisa, e programas de depreciação acelerada são políticas de indução eficazes, comprovadas e de uso generalizado nas economias mais avançadas e modernas do mundo. Desde que os beneficiários destas ações não sejam escolhidos individualmente, numa clara demonstração de vantagens pessoais, não a nada a reclamar. O estado está somente sendo estado nestes casos. A alternativa é deixar o livre mercado fazer as escolhas. Os defensores do livre mercado argumentam que as escolhas do estado não são neutras, mas as do mercado o são? E são socialmente mais eficientes? Afinal, qual o motivo para as críticas de fundo sobre o lançamento de uma nova política industrial e seus consagrados instrumentos?   

(*) Professor Aposentado do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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