Opinião
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14 de janeiro de 2024
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07:39

Desrotulando o direito penal: crime e controle social (por João Beccon de Almeida Neto)

Imagem: Pixabay
Imagem: Pixabay

João Beccon de Almeida Neto (*)

Na semana passada, foi sancionada lei que inscreve os soldados escravizados da Revolução Farroupilha para o Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria. Os lanceiros negros foram massacrados em 1844 na Batalha de Porongos. Bom, cabe lembrar que à época “quem tinha a pele polianga vivia na escuridão; desgareado e acorrentado, sem ter direto a razão”. Mas aí veio a lei Áurea em 1889 e não temos mais negros escravizados. Então te pergunto: e que aconteceu depois? Bom, o negro que trabalhava nas charqueadas, nas fazendas de cana de açúcar etc. continuou trabalhando nestes mesmos lugares, mas agora seria assalariado. Bom, mas aí em que condições? Com o patrão cobrando pelas ferramentas, roupas e comidas a preços suficientes a manter este trabalhador preso por dívidas e vendo seu ganho cada vez menor. Mas evoluímos, e nada disso vemos hoje certo? E o que o Direito Penal tem a ver com isso? Na necessidade de se manter a ordem e a segurança pública? Mas como isso ocorre? 

No Brasil, até 1940, o Código Penal (casualmente de 1890) tinha o capítulo “dos vadios e dos capoeiras”, tinha o intuito de criminalizar a população negra, que até pouco tempo eram escravos e que mesmo após a abolição permaneceram excluídos e sua imagem associado à criminalidade e a uma estética de atraso social. Geraldo Filme, sambista carioca, retrata bem isso em suas letras, como em “Vá cuidar de sua vida”: “Crioulo cantando samba era coisa feia/Esse negro é vagabundo, joga ele na cadeia”; ou em “Tenda dos milagres” de Jorge Amado, que retrata uma Salvador/BA dos início do século XX, em que o delegado Pedrito Gordo comenta que “São os mestres [autores fictícios e reais lidos pelos estudantes de Direito da época] que afirmam a periculosidade da negralhada, é a ciência que proclama guerra às suas práticas anti-sociais, não sou eu”.

César Passarinho, em diversas canções retrata cenário parecido. Em “Negro de 35”, que também é a origem dos versos citados a acima,” ele comenta sobre a participação dos lanceiros na Revolução Farroupilha e a promessa de abolição, que não se concretizou e destaca a importância da lei Afonso Arinos que pela primeira vez, em 1951, inclui como contravenção a injúria racial e proíbe a discriminação por raça e cor. Passarinho neste trecho da canção comenta: “Porque o amor não tem cor, sem cor é a fraternidade”.

Lembram que o crime tem seu conceito ligado ao discurso político? Bom, cabe ressaltar que a primeira metade do século XX é marcada por duas grandes guerras mundiais por uma razão. Elas representam a falência de uma economia baseada em países colonizados e colonizadores. Com a formação dos chamados Estados de Bem-estar Social (resumindo aqui de forma grosseira esse cenário) temos uma nova narrativa disputando espaços. Não é à toa que o historiador britânico Éric Hobsbawn intitula o século XX como a era dos extremos.

Neste contexto, temos outros tipos criminais que buscam continuar perpetuando seu tradicional discurso de controle e previsibilidade social, mas que em um contexto de pluralidade social se mostram preconceituosos e perpetradores de injustiças. E neste sentido e no afã de buscarmos respostas rápidas ou cheias de certezas, é que vamos ter inúmeros exemplos reativos de reprodução de discursos criminalizantes e de que a lei necessita reprimir mais. Mas essa resposta só demonstra o mesmo desejo de indicar a solução partindo do pressuposto de que há uma causa. Mas o cenário complexo necessita de uma visão menos reducionista para compreender que o certo e o errado não estão ligados a conceitos fechado e prontos e que tradição e cultura são referenciais que estão em constante movimento.

(*) Advogado Criminalista, professor da Unipampa (@joao_beccon)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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