Opinião
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19 de dezembro de 2023
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07:00

Quando um desejo decidido é mais forte que as superstições (Coluna da APPOA)

Imagem: Pixabay
Imagem: Pixabay

Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr (*)

Recentemente, fui convidado para dar uma palestra no interior do estado e fiquei surpreendido por certa indagação inusitada. Depois do evento, no jantar de confraternização, após alguns cálices de vinho, uma jovem angustiada me fez a seguinte questão: “Vocês da psicanálise acreditam em superstição?” Antes de ousar alguma resposta, resolvi questioná-la sobre o motivo dessa interrogação, ao que ela refere: “Vou casar na próxima semana e o meu noivo me viu vestida de noiva. Minha avó disse que isso é mau presságio”. 

Após me esmerar para falar sobre Lacan com Hamlet, esse foi o efeito? Diante do inusitado, logo veio o pensamento: Como, em pleno 2023, tal superstição é capaz de deixar alguém amedrontada? Por outro lado, enquanto psicanalistas, sabemos que quando se fala de espectros, de tragédias, de lutos e de desejos, nunca se sabe o que pode acontecer. Os fantasmas de cada um podem retornar. Talvez por isso, resolvi dizer para ela: Rosinha (nome fictício), vou te contar uma história que antecedeu a semana do meu casamento, há quase três décadas. Espero que essa fala possa te ajudar a repensar as tuas superstições. 

Eu havia me formado em um final de semana e tinha casamento marcado para a semana seguinte. Loucura que somente a juventude, somada com falta de noção das coisas, pode explicar. Apesar da dureza financeira daquela época, estávamos felizes e determinados a vivermos juntos. Alguns amigos, com medo de perder a parceira e sabendo que não tínhamos onde cair morto, diziam: – “Vocês são tão jovens, aproveitem mais antes de casar”. Não adiantou, parecíamos destemidos.

Dinheiro não nos assustava, mesmo porque, quando noivamos, resolvemos rifar duas máquinas secadoras enxutas e conseguimos viajar pela primeira vez para a Europa. Provavelmente, teria sido muito mais difícil caso não pudéssemos contar com a ajuda de meu cunhado que morava em Madri. Além de nos hospedar em sua casa, ele bancou algumas refeições, mero detalhe da sua sempre calorosa receptividade. Fomos à Barcelona, Toledo, Ávila, Sevilha e ainda deu para fazer um “curso” de psicanálise, do qual, felizmente, fora o título bizarro “Entrevista diagnóstica na depressão”, não lembro de absolutamente nada. Talvez, essa experiência tenha deixado tudo parecer fácil; provavelmente, a ideia de casar, fazia parte dessa empolgação. Porém, Rosinha, como dizem os mais antigos, uma coisa é o noivado, outra, bem diferente, é o tal do casamento. 

Você é supersticiosa? Acredita em sinais?

Vamos, então, à semana anterior ao casamento. Eu havia conseguido o carro emprestado com o meu irmão mais velho e estava indo em comboio com alguns amigos para Santa Maria. A ideia juvenil era fazer muita festa sem nenhuma preocupação. Minha sogra havia dito que eu não me preocupasse com nada, pois ela teria contratado alguém para organizar a cerimônia. Minha única responsabilidade era casar e cuidar do tal dos proclames, que deviam ser realizados algumas semanas antes do casório. Então, era só alegria e correr para o abraço. 

Saímos de Porto Alegre logo no início da tarde. Barão, Legião, Titãs e ACDC foram as nossas vozes até Santa Cruz. Pouco antes de chegar naquelas curvas nauseantes, ouvimos um barulho na roda dianteira direita do carro, a direção puxou com força para o lado e saímos ziguezagueando para o acostamento. O para-choque caiu, o pneu estourou e, o pior de tudo, havíamos atropelado algum animal. Rapidamente, a empolgação se converteu em tensão. O para-choque ficou para trás, o bicho, não encontramos, restou-nos trocar o pneu. A queda da nossa energia foi imediata. 

O amigo mais animado logo disse:  

– “O importante é que estamos todos bem. Seguimos na paz e devagar.” 

Resolvi iniciar os procedimentos para a troca do pneu. Quando me agachei para pegar as ferramentas, minha amiga, conhecida por todos como muito supersticiosa, frequentadora assídua do Vale do Amanhecer em Planaltina, colocou a mão nas minhas costas e foi dizendo: 

– “Amigo, amigo…, sei não, acho que isso aí é um sinal. Olha só quanta coisa já aconteceu na saída. Até a minha fita sagrada da Cássia Eller ficou toda enleada no cabeçote desse carro. Isso nunca ocorreu antes, era uma BASF 90, pense. Viajo por este Brasil todo. Sei lá, deu ruim.” 

Ela era de Brasília, conhecia a Cássia e a amava de paixão. Por isso, falei: “acho que você ficou p em função da fita e agora está querendo que a gente pare o trem. Que nada, vamos em frente, esqueceu a letra? 

Bobeira é não viver a realidade […]
Eu só peço a Deus
Um pouco de malandragem
Pois sou criança
E não conheço a verdade
Eu sou poeta e não aprendi a amar
Eu sou poeta e não aprendi a amar

Logo após lembrá-la do refrão, ela abriu largo sorriso e respondeu naquele sotaque lindo:

– “É isso aí, irmão. São as palavras da Musa. Tinha pensado nisso, não. Vamos beber todas. Lembrei que sou madrinha dos noivos e não posso falar bobagens”. 

Rosinha, como você poderá constatar, a amiga supersticiosa não estava totalmente equivocada. Tão logo chegamos em Santa Maria, minha sogra disse que seria interessante falarmos com o padre para saber se estava tudo certo com o tal dos proclames do casamento. Naquele instante, gelei, esqueci da única coisa que eu havia ficado responsável. 

O padre logo foi falando que a cerimônia estava cancelada, pois além de não ter sido dada a entrada na comunicação do casamento, o Bispo não estaria permitindo o matrimônio em celebração fora da Igreja. Incrédulo, eu e a Fabiana tivemos dificuldades em acreditar no que estava acontecendo. O que poderíamos fazer? Nossos familiares, vindos de outras regiões do país já estavam na cidade. Apesar do clima festivo, silenciosamente, sabíamos que não haveria mais festa. 

Na esperança de encontrar alguma saída, fomos em quase todas as paróquias da cidade, inclusive de religiões diferentes, na aposta de que alguém aceitasse realizar o casamento. Chegamos a passar a tarde inteira fazendo um cursinho relâmpago de noivos para ganhar o sinal verde e aliviar a tensão. Entretanto, não deu certo. Quando estávamos quase perdendo as esperanças, minha mãe, que havia cursado filosofia na UFSM, lembrou-nos de que durante a faculdade, ela tivera alguns padres como colegas de curso. Decidiu ligar para eles e pedir ajuda. Como num passe de mágica, o inacreditável aconteceu, de repente tínhamos agendado para o outro dia uma audiência no bispado. Com isso, a atmosfera de preocupação se dissipou rapidamente.

Meus irmãos, cientes de que era preciso afastar as preocupações dos últimos dias, me convidaram para jogar futebol com os amigos. Antes de irmos para o jogo, fomos visitar o meu avô. Ele praticamente me deu de presente o seu carro para que pudéssemos fazer a lua de mel nas praias de Santa Catarina. “É teu. Paga como puderes”. Um verdadeiro bálsamo de alegria naqueles dias confusos. 

Saí feliz da casa de meus avós junto com meu irmão e o nosso amigo em direção ao campo. Descíamos a Venâncio Aires e quando chegamos na esquina com a Appel, um menor de idade, que havia pego o carro escondido, adentra a preferencial colidindo no lado direito do nosso carro, que eu havia ganhado há menos de trinta minutos. A força da batida foi tão grande que arrastou o veículo, derrubando a porta de uma joalheria abaixo do prédio dos militares. Meu irmão teve pequenos ferimentos em decorrência dos estilhaços do vidro e o nosso amigo deslocou o ombro. Além da aglomeração que se formava em torno de nós, o veículo foi fotografado dentro da joalheria.

Estávamos em janeiro de 1998 e, para completar, no outro dia, passaria a vigorar a mudança no Código Nacional de Trânsito. Assim que saí do carro, fiquei incrédulo com o que acabava de acontecer, mais chocado ainda com a frase repetida pelos desconhecidos que se aproximavam: “Tem seguro”? Não lembro de perguntarem se estávamos bem, apenas se o veículo estava assegurado. No dia seguinte foi dado o veredito: perda total e, como se não bastasse, Rosinha, o carro não tinha seguro! 

Minha amiga voltou ao pé do meu ouvido. “Meu querido, lembra da vinda, do pneu, do para-choque, do bicho, da minha fita da Cássia, depois, do esquecimento dos proclames, agora isso! Porra cara, você tá muito carregado. Ou você desiste ou vai tomar uns passes, fazer um descarrego”. No outro dia, ela meteu um galho de arruda na minha orelha esquerda e com o dedo em riste disse: “Deixe isso aí até o dia desse casamento”. Resolvi acatar a sugestão e não desafiar os deuses. 

Os problemas iam acontecendo, ao mesmo tempo em que algumas providências traziam alívio. O advogado da família do adolescente reconheceu a culpa e encaminhou o acerto financeiro que traria certa tranquilidade. Em nossa audiência com o Bispo, despejamos nossos dilemas e ele ficou sensibilizado com os fatos ocorridos, talvez, por isso tenha dito: “Agora, vamos fazer esse casamento acontecer, mas não pode ser fora da Igreja.” Claro! Faremos o que o senhor disser – respondemos. Saímos de lá com o aval do Bispo e com uma assinatura abre alas: iríamos casar na Catedral em pleno sábado. Quanto aos proclames? Foram proclamados…

A alegria do casamento foi imensa, os amigos mais próximos que acompanharam a nossa odisseia estavam radiantes de felicidade. Comemos, bebemos, rimos e dançamos muito. A cada mesa que chegávamos para cumprimentar os convidados, alguém lembrava dos percalços do percurso trilhado até ali. Foi uma festa de lavar a alma. Agora, era só aproveitar a comemoração e no dia seguinte, rumo à praia. Viu Rosinha, até as superstições mais escabrosas tem limite. Será?

Após a festa, ainda cedo da manhã, a campainha do apartamento que dormíamos naquela noite tocava incessantemente. Aos tropeços, ainda se equilibrando e sob os efeitos da bebida, abri a porta. Era a minha sogra. Ela estava transtornada repetindo a mesma frase: “Fulano morreu, Fulano morreu, Fulano morreu”. O que? Quem? Pesadelo? O inacreditável aconteceu, o tio que veio para o casamento teve um enfarto fulminante e faleceu ali mesmo na casa dos meus sogros, na peça exatamente abaixo do quarto que estávamos.

Como o óbito ocorreu na residência, a ambulância não removia o corpo, era preciso o IML e a polícia irem até o local para atestarem o óbito. Tão logo descemos para o apartamento, absolutamente chocados com a notícia, vimos todas as flores que ganhamos de presente de casamento envoltas no corpo do tio. Apesar de alguns problemas de saúde, nunca alguém imaginaria que aquilo poderia acontecer, mesmo porque, ele estava entre os mais empolgados da festa, sorria e dançava animado. Guardo na lembrança aquele sorriso generoso e as piadas ruins ouvidas com atenção em função do respeito.

Na noite anterior, uma festa inesquecível, no dia seguinte: velório, enterro, tristeza. Minha amiga fã da Cássia voltou a colocar a mão no meu ombro: 

– “Então, meu bruxo”, (agora virei bruxo). Nem sei mais o que pensar. Essa viagem começou e não termina. Chapei total, esse beck não tem fim. Escute, logo as pessoas vão pensar que vocês são azarados e sairão de perto, compreensível né? Ou, vão achar que tu tens o corpo fechado, pois o cara partiu para o outro plano na cama exatamente abaixo da sua. Doideira total, maluco! Escuta a dinda: vocês têm que saltar fora.” 

– Como? Para onde? O cara do carro ainda não fez o pagamento. 

– “Ora, peguem ônibus e vão para qualquer lugar, ninguém vai correr o risco de emprestar carro para vocês.” 

– Nossa, valeu a força, Dinda! A nuvem do pessimismo bateu total? 

Nesse momento, ela teve acessos de riso e disse: 

– “Na verdade, estamos vivendo o excesso de realismo transcendental com consequências terrenas.” 

– Oi? Isso é da mais para minha cabeça. 

– “Amigo, isso tudo é o bicho atropelado que está cobrando seu preço. Estamos no campo magnético do bichano. Não se preocupe, já acendi vela de sete dias para liberar a alma dele, alinhar a órbita dos planetas e deixar entrar a luz”.

  Mesmo já fazendo análise há alguns anos, confesso, fiquei arrepiado. Vela de sete dias? O que isso? Qual propósito? Frente a minha interrogação, ela puxou outro refrão com intuito de justificar o que buscava com suas preces: 

Quando o segundo Sol chegar
Para realinhar as órbitas dos planetas
Derrubando com assombro exemplar
O que os astrônomos diriam se tratar
De outro cometa

Desde criança, quando ficava perdido, sempre procurava meu avô. Dessa vez, foi a mesma coisa. Ao chegar na sua casa, tão logo me viu entrar, ele se levantou da sua poltrona, abriu a gaveta e retirou o molho de chaves da sua casa na praia. Estendeu a mão e disse: “Vai!” 

Apesar do amor que tinha por ele, pensei em abrir mão do conselho. Você poderia pensar, diante das escabrosas circunstâncias, ir de ônibus para praia numa lua de mel, pode até ser legal. Mas, detalhe, não estávamos falando das praias da Pinheira, do Rosa, da Joaquina, de Garopaba, era nada mais nada menos que a praia do Quintão: My god!!! Como dizer isso para Fabi? Meu amigo muito espirituoso chegou a falar: “Isso sim seria motivo indelével para anulação imediata de qualquer casamento.” 

Então, Rosinha, como tu achas que ela reagiu quando mostrei o molho de chaves de meu avô? Acredite, ela apenas disse: “Vamos nessa!”. Por precaução, resolvi perguntar: tu estás falando sério? – “Claro! Precisamos ficar sozinhos.” Em poucas horas, estaríamos entre rodoviárias e, no outro dia, em plena Maldivas Sulinas. Se eu te disser que chegamos lá e não havia táxi, a casa era longe e estava chovendo, tu vais achar que estou exagerando. 

Nos primeiros dias, diante daquele nescau imenso, da corrida de obstáculos entre o tapete de mães d’água e o vento nordeste lacerando a pele, como forma de esfoliação de areia pelo corpo inteiro, caminhávamos como se estivéssemos numa daquelas estradas sem fim que os pagadores de promessa resolvem fazer. Resultado: tendinite nos tendões dos pés, tala e repouso. Só nos restou ficar em casa. 

Para a nossa surpresa, tinha um casal de raposas no sótão com recente ninhada. “Era o bicho que tinha voltado”, respondeu a minha amiga ao tomar conhecimento. Podia ter voltado somente ele, não precisavam ser múltiplos. Mas, um bando de raposinhas não é nada para quem já está o que mesmo? Deixa pra lá.

Nunca pensei que diria tudo isso para aquela desconhecida. Quando parei de falar, ela parecia assustada, com os olhos esbugalhados me olhando. Logo perguntou – “Isso tudo é verdade? Quanto tempo ficaram casados?” Ao que respondi: ainda estamos casados. – “Sério? Essa vida é engraçada mesmo”, ela respondeu rindo. Aproveitei o ensejo, fiz uma breve pausa e devolvi a pergunta do início da nossa prosa. Então, Rosinha, tu ainda acreditas em superstição? De imediato ela falou: 

– “Tu não a viste vestida de noiva antes do casamento, né?” 

Naquele momento, eu me dei conta da minha ingenuidade: superstição é superstição. Nunca tente dissuadir um supersticioso. Pensei, ainda, em dizer algo a mais para ela. Rosinha, não se preocupe tanto, o desejo decidido transpõe qualquer presságio ruim. O mais importante não é o que o seu noivo viu e sim aquilo que vocês poderão ver juntos. Como diria a minha amiga, escute a musa:

Ando por aí querendo te encontrar
Em cada esquina, paro em cada olhar
Deixo a tristeza e trago a esperança em seu lugar
Que o nosso amor pra sempre viva, minha dádiva
Quero poder jurar que essa paixão jamais será
Palavras apenas
Palavras pequenas
Palavras

(*) Psicanalista, membro da APPOA, doutor em Psicologia Social e Institucional – UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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