Opinião
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6 de dezembro de 2023
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07:49

Porto Alegre: uma cidade que deixou de cuidar das pessoas (por Giovani Culau e Biga Pereira)

Defesa Civil pede que população fique em casa se puder. (Foto: Luiza Castro/Sul21)
Defesa Civil pede que população fique em casa se puder. (Foto: Luiza Castro/Sul21)

Giovani Culau e Biga Pereira (*)

Nos últimos meses, a Câmara Municipal de Porto Alegre vem se debruçando sobre o debate do orçamento para a capital em 2024. A proposta é anualmente elaborada pelo Executivo e discutida pelos vereadores em duas etapas (primeiro, através do Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias – PLDO, depois através do Projeto de Lei Orçamentária Anual – PLOA), terminando de ser votada nesta semana.

Por trás do compilado de números e tabelas, a proposta para o último ano da gestão de Melo à frente da Prefeitura é reveladora de um Projeto que não cabe para Porto Alegre. É importante lembrar que a capital gaúcha é a quarta capital brasileira que mais encolheu em população, em relação aos números de 2010, conforme demonstra o último censo do IBGE de 2022 (com redução de proporções expressivas entre a faixa etária economicamente ativa).

O número demonstra o esgotamento de um ciclo de desenvolvimento econômico para a cidade, sintomático dos compromissos das últimas gestões em governar apenas para grandes construtoras e grandes empresários, sem trazer ao centro do projeto de governo os setores que constroem a cidade no dia a dia, como a juventude, os negros e negras, os trabalhadores e trabalhadoras e as mulheres, que inclusive representam maioria da população na capital e lideram este índice entre as cidades do estado.

Nessa mesma linha, a peça orçamentária para 2024 evidencia as contradições da atual gestão: logo na apresentação, o governo destaca que o último ano da gestão traduz o “compromisso soberano do governo de responsabilidade com os recursos públicos e sua aplicação onde mais precisa“, mas, na prática, desde o início do governo não é o que acontece e não deve mudar no último ano.

A gestão Melo foi composta por grandes escândalos como a crise no lixo, a entrega e o arboricídio no Parque Harmonia, a entrega da Carris para a empresa Viamão por um valor irrisório, o uso de PIX pessoal de assessor para recebimento de valores na ocasião das enchentes e, ainda, os vícios nas compras realizadas pela Secretaria de Educação (como demonstrou a CPI da Educação) com contratações irregulares de empresas investigadas por desvios de recursos e administradas por sócios laranjas.

Ainda sobre o descaso com a educação infantil em nossa cidade, é importante apontar que faltam vagas na creche e o orçamento para 2024 não prevê saída para essa crise: A Prefeitura trabalha com uma demanda de 6,3 mil vagas, mas um levantamento exclusivo feito pelo Jornal Matinal, com base em dados do IBGE e do Censo Escolar 2022, revela que Porto Alegre precisa ofertar o dobro de vagas da demanda manifesta, totalizando 12.317, sendo este o número mínimo de vagas que precisam ser criadas para atender o Plano Nacional de Educação (PNE).

Acerca da Gestão Ambiental, finda-se o ano em que Porto Alegre vivenciou as duas maiores cheias do Guaíba desde setembro de 1967. Entre as duas ocasiões, as enchentes deixaram mais de 50 mortos no RS e mais de 200 famílias porto-alegrenses cadastraram-se para receber auxílio do Programa Municipal de Recuperação (ainda não liberado integralmente). Em um tema que afeta cada vez mais a vida da população, faz-se necessário analisar as políticas e valores para o orçamento de 2024.

A proposta apresentada pelo executivo foi de reduzir os recursos para educação ambiental em relação a 2023 e também destinar apenas R$19.500, para “Gestão ambiental e qualificação das unidades de conservação” em 2024. Porto Alegre é a única capital com reserva biológica e conta com quatro unidades de conservação: Reserva Biológica do Lami José Lutzenberger, Parque Natural Morro do Osso, Refúgio de Vida Silvestre São Pedro e Parque Natural Municipal Saint’Hilaire – tendo sido a maior parte da última cedida para a gestão de Viamão em projeto sancionado este ano, mas sendo mantida parte de área de conservação sob gestão de Porto Alegre. Todas essas Unidades de Conservação se relacionam com o Guaíba de algum modo, regulando a qualidade e o nível da água, por exemplo.

Somado a isso, escancara-se a visão negacionista sobre os temas ambientais da atual gestão com o apontamento do valor previsto para “Melhoria no sistema de proteção contra cheias” de apenas R$4.000 (quatro mil reais) para o ano que vem, mantendo a tendência de baixo investimento em políticas de prevenção neste ano em que foi possível observar, por exemplo, problemas no fechamento de várias comportas do Guaíba. Para “Diagnóstico e monitoramento ambiental” e “Gestão da fiscalização e do monitoramento urbano ambiental” há a previsão de valores aproximados, respectivamente, de R$18mil e de R$11mil.

Além disso, os valores já incipientes previstos para políticas de combate ao racismo reduzem em mais da metade em relação ao Projeto Orçamentário de 2023: as “políticas públicas de direitos específicos – povo negro” caem do indicativo de R$401mil neste ano para R$126mil em 2024, enquanto os recursos para a semana da consciência negra, previstos no projeto de 2023, deixam de constar no projeto para o ano que vem. 

Em se tratando de programas e políticas públicas para LGBTQIA+, o Executivo opta por não apresentar nenhum programa para a pauta na Lei Orçamentária Anual: ainda que havendo aprovação na Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2024 para a Casa de Acolhimento LGBT, por emenda da bancada do PCdoB, o Executivo não indicou nenhum valor para a ação.

Este também é mais um ano em que o orçamento da Gestão Municipal não dá relevância à necessidade de investimento em políticas públicas para as mulheres. Apesar de Porto Alegre ter mais da metade da sua população composta por mulheres, Melo apresentou para a Proposta de Orçamento de 2024 valores irrisórios para efetivação das políticas de emancipação (apenas R$25mil) e saúde integral das mulheres (não consta na PLOA 2024). Além do mais, mesmo considerando que há poucos espaços de acolhimento para as mulheres vítimas de violência em nossa cidade, Melo indica o valor de apenas R$9.250 para a Implementação da Casa da Mulher Brasileira.

Segundo dados do IBGE, mulheres – especialmente negras e pardas – são as principais usuárias da atenção básica à saúde via Sistema Único de Saúde (SUS), do público que utilizou o SUS no último ano, aproximadamente 70% eram mulheres, das quais 60,9% eram pretas ou pardas. Ainda assim, o Governo Melo não apresentou na LOA 2024 nenhum valor para atender especificamente a Saúde Integral da Mulher. A título de exemplo, constata-se que, tem em vista a lista de espera dos exames a serem realizados pelo SUS, a modalidade com a maior fila é para Ultrassonografia Mamária Bilateral, a qual conta com um total de 14.478 registros em espera para atendimento, sendo a solicitação mais antiga feita há quase três anos (09/10/2018). Ao olharmos para a fila do SUS na capital, constata-se que esta cresceu 65% em um ano, isto é, há um ano haviam 39 mil consultas especializadas, agora são 64 mil. Assim, desprezar o aporte de valores na área representa um descaso com a vida das mulheres.

Em se tratando da juventude, no âmbito do orçamento, a cruzada pela retirada de isenções no transporte para este segmento feita em debate público e aberto pelo Prefeito demonstra a concepção da gestão de que o setor juvenil poderia já estar sendo beneficiado em excesso.

Analisando os números para a Secretaria de Esporte, Juventude e Lazer, a única ação da pasta que trata especificamente de juventude é a de “Inclusão para a Juventude”, com valor de destinação de apenas R$150mil reais. Além disso, o número revela-se como mera previsão já que não há ações e programas bem definidos para este segmento na secretaria previstos no orçamento, tampouco ações de juventude transversalizadas com outras secretarias (desenvolvimento, cultura, etc).

No aspecto do lazer e direito à cidade, a criminalização da juventude no uso de espaços públicos, como identificado em medidas institucionais da gestão para a Orla e Cidade Baixa, também confluem neste sentido. Cabe lembrar que foi editado pelo Prefeito um decreto vedando a venda, inclusive, por meio de tele-entrega, e o consumo de bebida alcoólica no período da meia-noite às 8h (oito horas) do dia seguinte na região da Orla, permitindo que a Guarda Municipal fizesse “uso progressivo de força” para dispersar aglomerações.

Sobretudo, a proposta de Melo é dúbia no sentido de programas e valores: muitos recursos estão destinados a ações mais genéricas – deixando indeterminada sua aplicação em programas específicos, por exemplo – ou até mesmo apresentando indefinições, como no que diz respeito às renúncias de receitas para as quais são apresentadas um conjunto de isenções e benefícios tributários em valores, mas ficando em aberto as modalidades e beneficiários, apontando isenção conforme Projeto de Lei a ser enviado ao Legislativo Municipal somente no ano que vem. 

Cabe destacar, ainda, que enquanto os servidores seguem sem reposição integral da inflação aos salários (com perda salarial de 24%), além de todos os cortes listados que foram propostos, o projeto de Melo não prevê redução generalizada de valores. Na verdade, é previsto aumento de receitas para o município no ano que vem, ao passo que  estão previstos aumentos de verba para pagamento e contratações de assessorias e para verbas de publicidade para o gabinete do Prefeito e para Departamentos como o DMAE (que também está na mira para ser entregue à iniciativa privada).

Nesse sentido, a falta de democracia de Melo está expressa do início ao fim do processo de discussão orçamentária. O Orçamento Participativo, que já foi ferramenta central para levar o debate à população, representa em valores para o ano que vem 0,005% da arrecadação tributária total prevista para o município. Na Câmara de Vereadores, a base do governo vem “passando o trator” em toda e qualquer possibilidade de contribuição do parlamento em ajustes no orçamento, a exemplo das emendas da oposição e da nossa bancada para ampliar os valores de proteção contra cheias e monitoramento ambiental, para ampliação da saúde integral da mulher e para mais vagas no atendimento escolar infantil. 

Em suma, a cidade pioneira na construção de Orçamentos Participativos verdadeiramente democráticos e palco dos grandes Fóruns Sociais Mundiais que bradaram por outro mundo possível e necessário não cabe no orçamento nem na proposta de Governo de Melo. Cabe ao campo político progressista da nossa cidade elevar e democratizar junto à população a construção de um programa que coloque o orçamento municipal à serviço do seu povo e de um novo estágio de desenvolvimento para a cidade, e não para as grandes construtoras e grandes empresários de Porto Alegre.

(*) Giovani Culau – Vereador em Porto Alegre e Líder do PCdoB na Câmara Municipal. Vice-Presidente do PCdoB na cidade. Cientista Social graduado pela UFRGS, tem 29 anos e é o único vereador gay assumido da capital gaúcha.

Biga Pereira – Vereadora do PCdoB em Porto Alegre, Vice-Presidenta da Comissão de Orçamento e Finanças da CMPA e Vice-Presidenta do PCdoB Porto Alegre.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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