Opinião
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27 de dezembro de 2023
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14:53

A irrelevância da vitória eleitoral de Milei (por Marcelo Milan)

Javier Milei, novo presidente da Argentina. (Facebook/Reprodução)
Javier Milei, novo presidente da Argentina. (Facebook/Reprodução)

Marcelo Milan (*)

Chega-se agora ao fim de um velocíssimo 2023. A história se acelera, assim como a catástrofe climática planetária. As ilusões e as mitologias, contudo, permanecem. As pessoas, em geral, associam cada volta da terra em torno do sol a um novo futuro e a uma possível mudança de vida e do mundo. Esquecem-se rapidamente que estavam na mesma posição geoestacionária há um ano, imaginando que 2023 traria as mesmas transformações que agora projetam em 2024. E que também não virão, pois é só um calendário para acompanhar o movimento dos astros. Na verdade, a fabulação para muitos começou bem antes de Kiritimati inaugurar mais um giro anual do planeta. Com a vitória eleitoral do tresloucado Xavier Milei (deveria se chamar Mi Ley, dadas suas tendências bonapartistas – mas cabe também a alcunha de infância, El Loco), a esquerda perdeu o rumo que já não tinha, acreditando que o atual líder do fascismo argênteo tem um poder gigantesco apenas por estar à testa do governo federal. Já a direita ‘parfumée’ não se incomodou tanto. Na Argentina, cada vez menos prata e mais matéria orgânica em decomposição, ela faz parte do (des)governo extremista. E há quem defenda que é esta direita que dirigirá o Estado de fato, posto que eleitoralmente não teve chances com as mesmas caras de sempre. Na bananilga, a direita ‘tripe à la mode de Caen’, que vibrou com a reforma escravista (fim do entulho varguista) do período transilvânico e com a lei de liberdade econômica (para os patrões) do (des)governo cavernícola, ambas aprofundando os ataques aos trabalhadores iniciadas com FHC, está exultante com a derrota do  ‘populismo peronista’. 

Mas poderia El Loco fazer, monocraticamente, tanto estrago como acredita a esquerda desnorteada? Não. Por várias razões. Aqui são esboçadas duas. Uma política e outra econômica. Em primeiro lugar, a ilusão de poder é reflexo do bonapartismo de Mi Ley, que se revela na administração por decretos. Tudo dentro da legitimidade do Estado burguês argentino. ‘Ele não tem maioria no parlamento’, comemoram. Pausa para gargalhar. ‘Ele não influencia o judiciário’, suspiram. Mais gargalhadas (nota: a justiça argentina não se acovardou diante dos ditadores). A vitória dele, porém, embora política, é principalmente eleitoral. Não há superpoderes ou um super-homem capaz de mudar tudo ou quase tudo de uma hora para outra. O poder real naquele país permanece com o agroatraso, que apoiou massivamente Mi Ley, para servir seus interesses. A questão importante é se o fascismo consegue se arraigar na sociedade de forma estrutural, mesmo em um país tradicionalmente com maior consciência política e nível intelectual que a bananilga  (e sem o fundamentalismo religioso que produz gado em escala pecuária). A ‘democracia’ (isto é, eleições) é apenas um dos instrumentos do fascismo, mas nem de longe o mais importante. 

A armadilha que prende a esquerda desorientada é o foco na pessoa e na conjuntura. Perde-se de vista o estrutural. O foco no sujeito é justamente o que a oligarquia quer. Na sociedade do espetáculo, o grotesco é uma imposição. Isso atrai votos do gado e dos desinformados. Mas é a estrutura socioeconômica que também permite conseguir votos dos inconformados, desiludidos com a desconhecida incapacidade de mudanças efetivas por meio do Estado burguês periférico. A eleição d’El Loco reflete um desespero para reverter a situação pelo único instrumento participatório permitido pelo capital: o sufrágio. A direita perfumada não poderia vencer as eleições com Macri ou Bullrich, associados aos fracassos que fortalecem o fascismo. Produz-se então um espantalho que poderia desempenhar bem o papel de antissistema sendo tanto sistema quanto os demais. Outras características são necessárias para vencer eleições com uma agenda liberal fracassada hoje. Loucura? Sim. Incapacidade política? Totalmente. Deficiências cognitivas? De sobra. 

E isso tudo importa para mudar a estrutura? Não. Pelo contrário. É para manter a estrutura oligárquica por meio de cortinas de fumaça. No capitalismo, os mandatos políticos são fixos justamente para evitar que a política possa ter continuidade e se conjugar com os movimentos estruturais ditados pela economia. Apenas quando a crise do capital faz o próprio capital agonizar é que a ditadura é acionada. Seria este o ponto atual? É impossível afirmar, já que as crises não tem ponto de mínimo. Todavia, não se deve esquecer de Brecht: nada mais fascista que um burguês amedrontado. Por outro lado, a classe trabalhadora está politicamente esfacelada. A aceleração do tempo histórico pode recuperar parte de sua força política, mas que será enfrentada com uma esperada repressão violenta. Pelo sim e pelo não, a burguesia Argentina já tinha começado a migrar para o Uruguai, onde a direita política ainda está perfumada (e penteada). E a burguesia platina que não se deslocalizou para o Uruguai está maravilhada com seu fantoche Mi Ley. A recente rápida alta dos preços representa uma veloz transferência de renda e riqueza em meio a um quadro estrutural de empobrecimento, que se acelera. 

Portanto, não é a pessoa, mas a configuração sociopolítica e seus determinantes que importam. Apenas no caso dos agentes políticos muito acima da média o componente pessoal desempenha papel relevante na dinâmica política. E dentro de limites cada vez mais estreitos sob o capital mundializado. Basta ver o gigante Lula prostrado aos pés de um sujeito sem a menor importância política (Harpa, ops, Lira). Não é que o sujeito seja brilhante, por qualquer medida. Mas as condições históricas e institucionais o fizeram ser o mandatário de fato no parlamentarismo orçamentário na bananilga. É preciso voltar ao maior pensador, a Marx. Ao 18 Brumário. As condições históricas herdadas criam o contexto para o exercício das agências políticas, não importa a estatura política ou pessoal dos quadros. Basta notar como foi rápido o desmonte político feito após o golpe contra Dilma, e por dois mequetrefes sem qualquer qualificação. Mas mesmo a presidenta pouco poderia fazer naquela conjuntura. Como na Argentina de Mi Ley, o estelionato eleitoral é, em maior ou menor medida, inevitável. E lá, com a perspectiva de repressão policial aos inevitáveis protestos, mais ainda. 

Em segundo lugar, e no mesmo diapasão, a eleição de Mi Ley não é causa, mas consequência. O desastre argentino veio antes. Bem antes. A decadência se desdobra num continuum histórico do ponto de vista tendencial, com idas e vindas, avanços e principalmente retrocessos. A interação política e econômica resulta em novas causas, novos desastres, induzidos ou ‘espontâneos’. Mi Ley foi o pior resultado eleitoral? É provável (principalmente para quem não conhece Bullrich). Mas…pior para quem? Fernández nada pôde fazer. Massa nada poderia fazer. Mi Ley igualmente nada poderá fazer para mudar a divisão internacional do trabalho ou para dotar a burguesia argentina de capacidade transformadora que explicam o atraso secular. A Argentina não virou uma Venezuela com Macri, embora este tenha dado sua contribuição para acelerá-la. E Fernández não poderia mudar o quadro, talvez apenas diminuir a velocidade do declínio. E não o fez. A Argentina vai virar uma Somália, modelo de sociedade sem Estado com que sonham os anarcomiguxos, termo que capta melhor a caricatura que se pretende anarcocapitalista (a deficiência cognitiva não permite entender o significado do anarquismo e do próprio capitalismo). A propósito: é muito mais produtivo conversar com cachorro morto do que com economista liberal. Se o executivo tivesse o poder idealizado pela esquerda perdida, Fernández transformaria a Argentina e Mi Ley não venceria o pleito. E antes dele Cristina Kirshner. E antes dela Alfonsín… Não é o fracasso de Fernández ou Massa. É o fracasso da América Latina, construção deliberada de suas burguesias e elites. Não é sem motivos que a fome hoje está maior neste subcontinente do que durante a pandemia de COVID-19. E a manifestação da decadência é diferenciada no espaço e no tempo. A Argentina hoje é a bananilga ontem. Mi Ley permitirá continuar o trabalho de Macri, assumindo que não foi profundo nem autoritário o suficiente. E para tanto conta com a mesma equipe de Macri. E de Menem. Não tem como dar certo para a maioria. Mas não representa nada de substancialmente novo no front oligárquico.

Além do agroatraso, Mi Ley tem apoio das frações do capital financeiro interligado aos circuitos internacionais, à espera da dolarização. As relações entre capitais que circulam na economia-mundo são mediadas pelo Estado burguês nacional e sua moeda. E as condições de acumulação interna dependem da capacidade das burguesias e das suas ligações com a acumulação mundial. A Argentina é dependente da exportação de produtos primários. Não tem como superar esta condição com medidas legislativas, por deliberação ou decreto. A dolarização representa o fracasso de uma sociedade. Mas é apenas parte de um subdesenvolvimentismo invertido. Em vez de se dar conta, após 40 anos, que o desenvolvimento não veio (para a maioria), após tentar fazê-lo em 4, Mi Ley quer visualizar o ponto final da decadência em 4 para não esperar 40. Isto é, quer fazer em 4 anos o que Collor, Itamar, FHC, Drácula e Cavernícola fizeram em quase duas décadas na bananilga. El Loco é, assim, mero desvio de atenção por parte das oligarquias e seu sistema político. A maioria passa quatro anos esperando mudanças favoráveis que nunca são feitas e então novas eleições para demandar novas mudanças que também não serão feitas em seu benefício. 

As mudanças prometidas por Mi Ley só podem acelerar o declínio. Como eliminar o banco central, instituição central do capitalismo, que gira em torno do dinheiro? Nenhuma pessoa minimamente inteligente que defenda o capitalismo pode sugerir isso. A abolição do banco central aceleraria as crises típicas do capital, criando ainda mais instabilidade (e justificativa para regimes de exceção). É claro que a dolarização desempenha um papel similar, tornando o banco central um aparato decorativo. Mas o dólar não é uma moeda privada. É estatal. São as contradições dos devaneios anarcomiguxos. Da mesma forma, a proposta de reduzir o tamanho do Estado vai até os privilégios do legislativo (Mi Ley também mamava nas tetas do Estado enquanto deputado), do judiciário e dos militares. Estas forças podem até criar algumas dificuldades, mas para vender facilidades (remunerações) e manter suas prebendas. Já as demissões em massa de servidores do baixo clero apenas vão aprofundar a crise iniciada lá atrás, com menor capacidade de realização do valor produzido pelo trabalho. 

Mi ley defendia outras medidas autoritárias no discurso, mas que são impraticáveis. Por exemplo, impedir um capitalista exportador argentino de vender para a bananilga ou para a China… É claro, mero jogo de cena. Mais cortina de fumaça. Depois de eleito, colocou o rabinho entre as pernas e mandou emissária se ajoelhar diante de Lula. Quis fazer o mesmo com a China comunista e teve a resposta esperada. A China suspendeu um acordo de financiamento. A bananilga manteve o financiamento para não desagradar o FMI, pensando no curtíssimo prazo. Por isso a China é a China e a bananilga é uma bananilga. Assim como na bananilga, onde quem manda de fato é a Faria Lima, na Argentina quem manda de fato não é o presidente. Este, em conjunto com as outras divisões administrativas e políticas do Estado, pode acelerar ou tornar mais lento o processo de decadência. A assimetria é entre a aceleração e o gradualismo, uma questão de ritmo, não de direção. Mi Ley quer, portanto, apenas antecipar o inevitável, em um contexto em que a própria natureza acelera o desastre do ponto de vista ecológico e afeta a reprodução do capital agrícola que sustenta o capitalismo platino. A aceleração do tempo histórico apenas deixa claro que a decadência deixa de ser lenta e gradual. A hiperdesvalorização do Peso pluma em 12/12 compensa parte das rendas futuras perdidas pela crise climática. Contudo, movimenta a especulação monetária e financeira, acelera a inflação e gera insatisfação social. Mas nada que já não tenha ocorrido antes.

No pacote de 300 medidas liberais, mais do mesmo. Avança na privataria. Mas quem compra ativos de um país dirigido nominalmente por um lunático? A China. Mi Ley vai interferir no processo? E na linha liberal latino-americana, não poderia faltar a abolição dos direitos (sic) trabalhistas, com a prometida repressão de greves e mobilizações populares. Como também é típico do liberalismo bananeiro. Não é novo. FHC ordenou ao exército invadir refinarias da Petrobrás com tanques. O cabedal de propostas estúpidas de Mi Ley passa ainda pelo mercado de órgãos. Vale o mote: nenhum pobre com órgãos sem dinheiro, e nenhum rico com dinheiro sem órgãos! Na verdade este é o devaneio dos anarcomiguxos para 2024: pretendem estabelecer o mercado de órgãos para comprar cérebros. O problema, para eles, é que ainda não há transplante (profissionais da área médica não conseguem conectar com a medula espinhal). E já pensam no mercado secundário: o burguês bebum precisa de um fígado novo. Compra de um empregado mal remunerado e, antes da cirrose, o revende com deságio de 50%. 

De um ponto de vista estrutural, o desastre de longo prazo da Argentina reflete a tragédia da América Latina, sempre a um R do buraco (literalmente). Trata-se do subdesenvolvimento crônico. Lumpen burguesia, lumpen desenvolvimento. A vitória eleitoral de Mi Ley é irrelevante para reverter a decadência argentina. A vitória política de longo prazo, com o fascismo liberal de mercado ganhando corações e mentes, é que verdadeiramente importa. E essa é definida tanto pela capacidade de convencionamento como pela própria inviabilidade do desenvolvimento socioeconômico na América Latina, que se reflete na rejeição aos mandatários de plantão. Mi Ley poderia até ser ‘o breve’, defenestrado nos próximos meses. E muito pouco mudaria politicamente. O fascismo se retroalimenta das crises que gera e não se derrota nas urnas. A esquerda não consegue entender isso e desta forma experimentará novas derrotas eleitorais e políticas. Lá e aqui.

(*) Bacharel, mestre e doutor em economia

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21

 

(*) Bacharel, mestre e doutor em economia


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