Opinião
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16 de novembro de 2023
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12:26

Sobre ser civilizado (por Domingos Alexandre)

Presidente Luiz Inácio Lula da Silva e presidente dos EUA, Joe Biden (Foto: Ricardo Stuckert/PR)
Presidente Luiz Inácio Lula da Silva e presidente dos EUA, Joe Biden (Foto: Ricardo Stuckert/PR)

Domingos Alexandre (*)

É bem frequente a pergunta sobre quando teria tido início a “civilização” e a resposta mais comum é: “quando os humanos começaram a sepultar seus mortos”. Pode ser a resposta mais corriqueira, mas há outras. Dia desses transitou nas redes sociais outra versão, a de que alguns antropólogos consideram o achado de um fêmur quebrado e regenerado como o verdadeiro início da civilização. Segundo aquela postagem (me penitencio por não ter retido a fonte), alguém com uma perna quebrada dificilmente sobreviveria diante de tantos predadores e de tantos perigos se não houvesse quem dele cuidasse. Ou seja, a civilização teve início quando um ser humano cuidou do outro. Quando alguém foi solidário.

Claro que a solidariedade é um traço que compõe nossa humanidade, mas também é inegável que essa humanidade comporta, admite e, às vezes, até prioriza traços ruins e maléficos. Não fosse assim, não estaríamos com essa sensação de total impotência diante da guerra na Ucrânia e do já centenário conflito entre Israel e a Palestina. Mais de duzentas mil vidas destruídas por conta de quem? Por responsabilidade de quem? Para benefício de quem? Como se não fosse um completo desatino duas etnias se exterminando por uma área do Planeta no qual todos deveriam ter os mesmos direitos, agora “homens” treinados e bem armados assassinam crianças judias e árabes. A mesma sensação de impotência que se tem no Brasil diante da penetração do crime organizado nas esferas governamentais e nas fileiras das instituições criadas justamente para combater o crime organizado, diante do visível avanço das milícias, diante da resistência das oligarquias que se opõem ferozmente contra a inclusão social e o consequente fim da miséria. Atitudes covardes e insanas como estas não são exclusividade dos nossos adversários. Em todas as épocas essas atrocidades são perpetradas por indivíduos que estão em algum ponto entre o mais pobre e o mais rico, entre o analfabeto e o erudito, entre a extrema-esquerda e a extrema-direita, entre aqueles que propugnam um mundo multipolar e aqueles comprometidos com o imperialismo. Alguns por ação, outros por omissão, o fato é que todos temos nossa parcela de responsabilidade. Fique bem claro que desde o início dos tempos a maior parte da população tem um comportamento mediano, procurando levar a vida em conformidade com as Leis e as regras sociais, ocupadas que estão na obtenção da subsistência e na criação de sua prole, mas também sempre houve quem se destacasse por temperamento nobre e, noutra direção, por atitudes ignóbeis.

Até o pai do liberalismo econômico, Adam Smith, já no século XVIII expressava um certo pessimismo quanto à possibilidade de elevação moral do ser humano devido à competição e à necessidade de obter vantagens e lucros.  No livro de P.J. O´ Rourke publicado no Brasil pela Zahar consta uma frase de Adam Smith que corrobora o que estamos dizendo: “A violência e a injustiça dos governantes da humanidade é mal antigo, contra o qual, temo, a natureza dos negócios humanos dificilmente admitirá algum remédio[1]”.  E a mesma descrença na possibilidade de um mundo melhor o pai do capitalismo expressou, em relação à competição que existe entre as nações: “Nação alguma jamais abandonou voluntariamente o domínio de alguma província, por mais incômodo que fosse governá-la. …Tais sacrifícios…são sempre contrários aos interesses privados da parcela que efetivamente governa a nação, que com isso não mais poderia dispor de muitos postos de confiança e de lucro, de muitas oportunidades de adquirir riqueza e prestígio, vantagens que a posse de uma província, por mais turbulento e por menos rentável que seja o conjunto da população, raramente deixa de proporcionar[2]”.

Embora justificável o pessimismo (ou realismo) do Adam Smith, há que se levar em conta a sempre existente possibilidade de mudanças, tal como ocorreu na passagem do Regime Feudal para o Capitalismo. Retomaremos este assunto. Antes, porém, é preciso realçar as dificuldades que teremos para garantir que as mudanças, que acreditamos estarem em curso, sejam mudanças para melhor. Em 1997 foi publicado no Brasil uma obra clássica de filosofia do direito, intitulada: Uma teoria da justiça, na qual John Rawls denuncia nossa ignorância como causa dos nossos equívocos: “O véu de ignorância impede-nos de modelar nossa perspectiva moral segundo nossos próprios vínculos e interesses[3]”.

Se “o véu da ignorância” é um empecilho para que elaboremos um plano de vida consentâneo com a mudança do mundo para melhor, igualmente nocivo, segundo este autor, é nosso egoísmo que é a razão de nos comprometermos somente com o ponto de vista de nossos interesses. John Rawls garante que a vida em sociedade exige equidade, isonomia e mentalidade coletiva: “a sociedade entre os seres humanos é manifestamente impossível com base em qualquer outra coisa que não seja levar em conta os interesses de todos[4]”.

Retomemos os sinais de mudanças atuais, com potencial de fazer surgir uma nova era para a humanidade. Apontamos três áreas com evidentes indícios de mudanças: (a) necessidade de alteração na atuação da ONU; (b) produção de energia; e (c) pesquisa científica. Especialmente com as duas guerras acima mencionadas é quase unânime a constatação que a ONU, assim como está, não cumpre bem sua função e sua autoridade precisa ser redefinida. É incontornável a dependência da humanidade de energia para uma vida plena, mas a preservação ambiental está exigindo a disponibilidade de energia renovável, não fóssil e não poluente. A pesquisa científica já está oferecendo avanços e soluções em quantidades exponenciais a todas as nossas necessidades diárias, mas especialmente a velocidade tem tido aumentos vertiginosos, seja na produção industrial, nos transportes, nas comunicações e, especialmente, no processamento de dados e informações.

Se estas três áreas têm o potencial de engendrar causas de progressos e avanços benéficos, não há garantias de que o mesmo aconteça no caso de ascensão de uma potência em substituição à uma potência decadente. É ilusão imaginar que a alternância na posição de potência hegemônica resultará necessariamente que, dali em diante, o desenvolvimento econômico e a riqueza produzida serão melhor distribuídos e que haverá elevação do nível moral da população. Então fica a pergunta: Quais as condições necessárias para o surgimento de uma nova era isonômica e inclusiva, de paz e prosperidade, onde, sem prescindir das liberdades individuais, toda a riqueza gerada reverta, verdadeira e proporcionalmente, em benefício de toda a humanidade? A primeira condição é sabermos quem tem se locupletado com as injustiças, com as guerras e com a miséria resultante de uma aviltante concentração da riqueza, como tem sido insistentemente denunciado pelo pesquisador francês Thomas Piketty. Não há como negar que as Big Techs, as petroleiras, a indústria armamentista e o capital especulativo são os principais beneficiários dessa escorchante concentração da riqueza.

Uma frágil e tênue possibilidade seria a população norte americana, num ímpeto de consciência, tomar as ruas e avenidas para confrontar e contrabalançar a influência que o “Deep State” exerce sobre Joe Biden. Somente um movimento de massas teria forças para conter a sanha arrecadatória dos potentados econômicos dos EUA, da Europa e do mundo. Outra condição necessária seria a vitória, de fato e de direito, de um sistema verdadeiramente multipolar com a consequente criação de uma nova e representativa entidade encarregada da governança global.

Já no Brasil o busílis é saber votar. Não podemos continuar elegendo congressistas cujo principal objetivo é botar a mão no dinheiro através das famigeradas emendas parlamentares, utilizadas para gerar uma relação de dependência dos seus apoiadores, dos vereadores e dos prefeitos, de olho nos recursos públicos, o famoso “pires na mão” que visa garantir reeleição. Outro obstáculo para a inclusão do Brasil no rol de países desenvolvidos é o vezo da criação de leis proibitivas. Muitas vezes a lei que proíbe se presta para fomentar a contravenção. Quem ignora que o popular “jogo do bicho” é proibido para que o mau policial possa achacar o bicheiro? Quem ignora que muitas vezes o traficante é extorquido por policiais corruptos? Todas as nossas mazelas foram denunciadas em um livro, cuja leitura deveria ser pré-requisito para legisladores, com o título “O nível” dos pesquisadores ingleses Richard Wilkinson e Kate Pickett, pela Civilização Brasileira, descrito pelo Sunday Times como “profundo, corajoso e transformador” e pelo The Independent como “uma bússola para reformular nossa sociedade”.

O “resumo da ópera” é que no Brasil e no mundo, aquele 0,1% mais rico (o mais rico em cada mil) legal ou ilegalmente têm sido muito “eficientes” contando, inclusive, com a apatia e até com o apoio do grosso da população, suas vítimas.

Se as classes subalternas, que constituem mais da metade da população mundial, tivessem consciência e elevassem a régua de suas exigências, o mundo seria melhor para todos. Aqui no Brasil, com o potencial econômico, social e cultural que tem nosso País, o “cavalo capitalista” poderia, como dizemos nós gaúchos, “pastar de rédeas soltas” que ainda assim facilmente atingiríamos o nível de bem-estar social que atingiram os países do norte da Europa, desde que houvesse justiça e inclusão social e nossas ditas “elites” fossem mais éticas e menos obtusas.

Assim como os Senhores Feudais eram proprietários das terras, hoje uma parte ínfima da humanidade, proprietária dos setores já referidos, concentram poder e riqueza em proporções que têm o condão de submeter, não só a maior parte da população mundial, como as instituições e os governantes dos estados constituídos.

Como acima dissemos, não se trata de quem é melhor, se o liberal ou o capitalista, se de esquerda ou de direita, se o analfabeto ou o erudito, se o pobre ou o rico, se este ou se aquele país com pretensões hegemônicas. Trata-se de assumirmos compromisso com outro patamar de desenvolvimento capitalista. Um Capitalismo homogêneo e isonômico, onde a riqueza produzida seja distribuída com equidade entre todos os seres humanos e onde, se alguém tiver que ter precedência, que seja quem verdadeiramente produz a riqueza, o povo trabalhador. Penso ser esta uma causa justa com potência para preencher de significado a vida e justificar a existência.

Notas

[1] A Riqueza das Nações de Adam Smith (uma biografia). P.J. O´Rourke. Zahar. Rio de Janeiro. 2008. p. 179.

[2]Ib. Idem. p. 147.

[3]Uma teoria da justiça. John Rawls. Martins Fontes. SP. Trad. Jussara Simões. 1997. p. 637.

[4]Ib. Idem. p. 619.

(*) Bacharel em história pela UFRGS ([email protected])

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