Opinião
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22 de novembro de 2023
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06:22

O que nos indica a vitória de Javier Milei (por Céli Pinto)

Javier Milei, novo presidente da Argentina. (Foto: Facebook/Reprodução)
Javier Milei, novo presidente da Argentina. (Foto: Facebook/Reprodução)

Céli Pinto (*)

A vitória de Javier Milei na Argentina pode ser comparada à vitória de Bolsonaro em 2018?  Há similitudes, ou são dois fenômenos completamente distintos?

A comparação oferece algumas dificuldades, até porque Bolsonaro já foi derrotado por uma coalisão liderada pelo PT, tendo como candidato Lula. 

Ainda assim, o fato de dois personagens políticos de extrema-direita ganharem eleições no Brasil e na Argentina, em um período tão curto de tempo, diz muito do que é a realidade política destes dois países latino-americanos. 

Bolsonaro e Milei se assemelham como personagens: têm trajetórias muito distintas, mas comportamentos parecidos: são bizarros, violentos, dizem coisas sem sentido,  falta-lhes o mínimo de compostura como  homens públicos. Mais do que isso, são pessoas que saem da obscuridade e emergem como candidatos de extrema-direita com o apoio de amplos setores da burguesia destes países e, o que é mais extraordinário, com imensa aceitação dos setores populares e dos jovens. 

Tanto um como outro se apresentaram como salvadores de países em profundas crises, mesmo que elas tenham natureza muito diversa.  Os problemas econômicos do Brasil não eram assustadores, mesmo que existissem , mas o país vivia uma profunda  crise política, provocada pelo próprio sistema que canibalisticamente se destruiu, servindo-se da banda podre do poder judiciário. A Argentina, de outra sorte, vive uma grave e desestruturante  crise econômica, com altíssima inflação anual e quase 50% da população na pobreza. Soma-se a isto uma sucessão de governos, peronistas ou não, que foram incapazes de construir alternativas para as crises. 

O mais surpreendente nestes quadros não são as crises e nem mesmo o surgimento de salvadores da pátria para resolvê-las, mas a popularidade que eles conseguem com as soluções que apresentam. Ambos, pessoalmente, afirmaram durante as campanhas estultices de toda a ordem, e impressiona que, através deles ou daqueles que sustentam suas campanhas, o que é apresentado como solução seja o aprofundamento de um capitalismo em sua versão mais perversa, um ultra-neoliberalismo. Eles não mentem, não disfarçam. Ambos têm profundo desprezo por discutir os  problemas sociais,  pensar soluções para pobreza e para desigualdade. Anunciam em alto e bom som que são mensageiros do capital, dos interesses do capitalismo financeiro internacional. Sem o mínimo de dignidade, ajoelham-se aos pés dos Estados Unidos. Bolsonaro um monoglota, chegou a dizer ao então presidente Trump: “I love you”. 

A América Latina já foi entregue de mão beijada ao capital internacional várias vezes. Na maioria delas, a burguesia necessitou se associar aos militares e por os tanques nas ruas, dar golpes de estado, torturar e matar. Agora não. A população  entusiasmada acha que entregar o país é a solução para seu futuro, por isso vota nestes paspalhos de ocasião.

Que condições propiciaram o aparecimento de soluções populares de ultra- direita?  Não parece difícil achá-las e, para começar, nada de brincar de avestruz. Precisamos enfrentar uma realidade: as esquerdas, as forças progressistas não têm apresentado projetos que se antagonizem de forma robusta à extrema-direita. Nós, do campo progressista, precisamos reconhecer que não temos projeto, não temos soluções a apresentar. Ficamos andando em círculos, sem um projeto que parta da convicção de que, dentro do capitalismo, não haverá solução para nenhum dos nossos grandes problemas, sejam eles chamados de luta de classes ou, pejorativamente, de identitários, ou até mesmo a destruição das condições de vida no planeta. Chega a ser hilário que os defensores de fechar a torneira enquanto se escova os dentes para economizar água votem alegres e entusiasmados em tipos que não acreditam na crise ambiental.

Do lado brasileiro, a leitora e o leitor poderão me contestar: agora o Brasil tem um governo de esquerda, liderado pelo menos por um partido de esquerda. Não, o Brasil tem uma grande liderança política, um dos maiores estadistas do planeta, Luiz Inácio Lula da Silva. Quando ele pode concorrer, quando não é encarcerado, ganha as eleições, mesmo que por uma diferença mínima de votos.  Mas é preciso olhar o Congresso Nacional, a Câmara de Deputados, o Senado, as Assembleias Legislativas, os governadores de estado para saber quem realmente se elege no Brasil. Não é a esquerda, não é o PT, o PSOL, o PCdoB, nem mesmo os velhos partidos de centro.

Então não nos iludamos, o governo Lula segue a cartilha do déficit fiscal zero, dos ministros de direita no governo, das nomeações conservadoras para agradar os presidentes da direita nas duas casas do Congresso e alguns ministros das altas cortes. 

Isto é um projeto alternativo ao capitalismo neoliberal? 

Uns e outras podem estar a pensar, enquanto leem este artigo: o importante é garantir a democracia, é preciso ter uma frente ampla para garantir a democracia. Mas a democracia, tal qual ela se manifesta hoje, parece não ser mais um ideal que mobilize  as classes populares. As vitórias de Bolsonaro e de Milei são expressões muito contundentes da pouca popularidade da democracia.  Devemos abandonar sua defesa? Nunca. Mas ficaremos sozinhos, uns poucos velhos, uns poucos progressistas, uns poucos esquerdistas defendendo a democracia, se não conseguirmos articular fortemente a democracia a um projeto de sociedade nova, que  permita aos jovens e aos não tão jovens se projetarem como cidadãos e cidadãs de pleno direito, com poder de decisão, com recursos econômicos e sociais para viver uma vida digna de ser vivida. Lula não viverá para sempre.

E, para ser um pouco mais pessimista, no Brasil, na Argentina, em muitos países europeus, nos Estados Unidos, em Israel, as necessidades do capitalismo não cabem mais em contratos democráticos liberais. O que nos espera? Há poucas razões para ser otimista a curto prazo. Mas há sempre o médio e o longo prazo para nos confortar, se não pessoalmente, pelo menos como humanidade.

(*) Professora Emérita da UFRGS; Cientista Política; Professora convidada do PPG de História da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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