Opinião
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14 de novembro de 2023
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14:44

Feira do Livro 2023: notas de incentivo à leitura (Coluna da APPOA)

Feira do Livro de Porto Alegre. Foto: Joana Berwanger/Sul21
Feira do Livro de Porto Alegre. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Robson de Freitas Pereira (*)

“Frente a los libros de la buena memoria/
se queda oyendo como un ciego frente al mar”
L.A. Spinetta

A Feira do Livro de Porto Alegre persiste. Apesar de ainda estar se recuperando dos efeitos nefastos da pandemia que abateu muitas livrarias grandes e pequenas, os livros voltam a ocupar e revitalizar esta parte histórica da cidade (tem gente que só vai ao centro nesta época do ano). Como o samba; que “agoniza, mas não morre”. Esta edição, de nº 69, com Tabajara Ruas como seu patrono, está em sua última semana. Bom momento para aproveitar o feriado e flanar na praça da Alfandega que passou por restauração e desde 2011, ampliou o espaço para as pessoas circularem entre as alamedas que agora, nestes quinze dias especiais, transformaram-se em corredores ladeados por barracas repletas de livros

Inevitável pensar em algumas obras, entre tantas, lançadas nos últimos tempos. Sim, o mercado editorial insiste. Algumas dicas: entre os autores locais, merecem ser lembrados Lupi- uma biografia musical, de Arthur de Farias. Excepcional trabalho de pesquisa e escrita elegante e bem-humorada sobre o mais popular compositor brasileiro que o Rio Grande do Sul produziu. Nascido na Ilhota, superando preconceitos e o provincianismo que muitas vezes inibe seus artistas, Lupicínio Rodrigues marcou época.  Quem teve a sorte de ver a exposição Lupi- pode entrar que a casa é tua que o Santander abrigou entre abril e julho deste ano, pode ter uma ideia das diversas dimensões e atualidade do autor de Nervos de aço e Felicidade.      

 Premiado até pelos paulistas, o livro ensaio de Luís Augusto Fischer, A ideologia modernista: a Semana de 22 e sua consagração demonstra com precisão crítica e histórica o lugar que a famosa semana ocupou no imaginário e na realidade do pensamento nacional. Na ficção que reconstrói e atualiza nosso passado, O incendiário, de Rafael Guimaraens nos apresenta mais um episódio neste seu trabalho de nos mostrar como episódios aparentemente distantes no tempo, quase esquecidos ou relegados aos documentos de arquivo, podem ser preciosos se escritos com talento. Este livro, recupera nos detalhes os incêndios do Tribunal de Justiça, em novembro de 1949 e da Repartição Central de Polícia, em janeiro de 1950. Preocupada em mostrar competência e empurrar para baixo do tapete suspeitas de corrupção e incêndio criminoso, a polícia logo apresenta o principal suspeito: o falsário espanhol Manoel Gonzales Aragón, vulgo Major Gonzales. Pequeno problema para os diligentes investigadores: Manoel estava preso em São Leopoldo nas datas em que ocorreram os incêndios. Maiores esclarecimentos nas páginas do livro.

Na prosa de ficção, Baldeação– contos de Luiz Mauricio Azevedo. Fortes, diretos, soco no peito, que não fazem baldeação para dizer o querem contar. Um livro sobre escombros e assombrados como ele mesmo define. Escombros, restos, vestígios de onde se reconstrói o novo, para “fail again/fail better” (fracassar de novo/fracassar melhor) como nos lembrava Samuel Beckett. Afinal, as assombrações diversas narradas no livro, ainda hoje (e por quanto tempo?) estão vigentes e reproduzindo o mal-estar de nossa cultura, maltratando na carne, singular e socialmente quem já nasceu e vive nos escombros, nas quebradas da vida. 

Entre os autores internacionais, o grande Italo Calvino que faria cem anos, tem celebrado seu aniversário pelo lançamento de nasci na américa… uma vida entre 101 conversas (1951- 1985). Entrevistas e textos confessionais dispersos ou guardados por mais de trinta anos, agora editados em um só volume para alegria dos admiradores do autor de Cidades Invisíveis e Seis propostas para o próximo Milênio entre tantos outros.

Os contos de Pedro Almodóvar: El ultimo sueño. Até o momento que escrevo, além do original em espanhol, cuja primeira edição esgotou em 24hs, há uma edição pela Alfaguara portuguesa – O último sonho, lançada em setembro passado. Os editores alemães, japoneses e ingleses já se adiantaram também. Por sorte, há barracas na Feira que vendem edições originais de Portugal e Espanha. O que minimiza nossa curiosidade de encontrar neste primeiro livro de contos do grande cineasta espanhol uma forma de autorretrato e algumas histórias que reconhecemos parcial ou inteiramente em alguns de seus roteiros filmados. Como é o caso de La visita, La ceremonia del Espejo ou na história título El ultimo sueño onde rende homenagem à mãe narrando seus últimos momentos com ela, sua influência (Todo sobre mi madre) e incluindo seu sobrenome ao assinar Pedro Almodóvar Caballero.

E last but not least duas obras para ler, reler e fazer consultas periódicas. A cor do inconsciente –significações do corpo negro, de Isildinha Baptista Nogueira (com apresentação de Abrão Slavutzky e prefácio de Kabengele Munanga). Ensaio e tese sobre as dimensões culturais e psíquicas da condição de negro no Brasil, onde concepção do olhar como objeto pulsional constitui uma das referencias cruciais. Tanto para fixar quanto para atravessar uma posição que vem se reproduzindo desde a saída dos ancestrais escravizados vindos da África. Os estudos de casos, ajudam a demonstrar a importância de diferenciar militância e clínica, duas funções fundamentais, porém distintas para que se possa persistir e não desistir jamais nesta luta dificílima, como escreve a autora. 

 Um defeito de cor – Ana Maria Gonçalves (Record, 36ª edição!). Monumental reconstituição da história do Brasil através da saga de Kehinde, capturada aos 8 anos no Daomé (Benin) que atravessou a Bahia, Maranhão, São Paulo e Rio de Janeiro ainda no século XIX. Adulta, liberta, retorna à África, mas nunca esquece o Brasil, pois aqui ficou seu filho vendido com sete anos. Ao final, quando consegue descobrir seu paradeiro tenta retornar para reencontrar o menino que se transformara naquele homem. Este resumo nunca vai conseguir dar conta da riqueza de detalhes onde violências inauditas cometidas contra os negros, se mesclam com a profusão de cores, cantos, danças e corpos que sustentam a vida apesar do sofrimento e da dor. A exposição homônima abrigada pelo MAR (Museu de Arte do Rio) deu uma ideia plástica e diversificada dos costumes religiosos, das etnias, das revoltas (iniciadas pelos Malês, pois eram muçulmanos e sabiam ler a partir do alcorão) e do talento para fazer arte de todas as maneiras possíveis e imagináveis. Nos permitindo cantar e contar:” sei lá, não sei/sei lá não sei não/ não sei se toda a beleza de que lhes falo/sai tão somente do meu coração”.

(*) Robson de Freitas Pereira é psicanalista; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). Publicou, entre outros: O divã e a tela – cinema e psicanálise (Porto Alegre: Artes & Ofícios, 2011) e Sargento Pimenta forever (Porto Alegre: Libretos, 2007).

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