Opinião
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2 de outubro de 2023
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10:15

Retrato do suicídio no Brasil (por Roger Flores Ceccon)

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Roger Flores Ceccon (*)

Albert Camus, em O mito de sísifo, defende que só há um problema filosófico verdadeiramente sério: o suicídio. Para o autor, julgar se a vida vale a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia. Pois bem, passados 82 anos da publicação do ensaio de Camus, o suicídio tornou-se não apenas uma questão filosófica, mas também social, política, ética e humanitária, dada a magnitude que atingiu nas últimas décadas no Brasil e no mundo.

Vamos aos números: só em 2021, 15.500 pessoas se suicidaram no Brasil. É muita gente. Na história do país, nunca foram tantas mortes por essa causa em um único ano. Em média, equivale a 1.292 suicídios por mês, 323 por semana, 46 por dia e aproximadamente um suicídio a cada 30 minutos. A imensa maioria das mortes foi de homens (78%), jovens (44%), negros (51%) e solteiros (53%) que se mataram na própria residência (62%), principalmente entre os meses de agosto a dezembro. Nos últimos dez anos, os casos de suicídio aumentaram 64%, e mais de 132 mil pessoas tiraram a própria vida. É como se um município de médio porte do país desaparecesse por inteiro.

O suicídio no Brasil não é um fenômeno raro e atinge níveis elevados, principalmente nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Mato Grosso do Sul, que apresentam as maiores taxas do país. Pará, Bahia e Maranhão possuem as menores cifras. Guiana, na América do Sul, e Coréia do Norte, na Ásia, são os países com os mais altos coeficientes do mundo.

O suicídio, portanto, é um fato social de elevada prevalência e um importante problema de saúde pública, principalmente entre a população masculina, embora as mulheres tentem suicidar-se em maior proporção que os homens, fato denominado de paradoxo do suicídio [1]. É considerado uma violência autoinfligida, um ato decidido e cometido pela pessoa com total conhecimento e expectativa do resultado fatal. 

O ato suicida simboliza a desistência de viver, e é um comportamento social que pode ser evitado na medida em que são apresentadas alternativas ao desespero. Ainda, não termina com a morte: trata-se de um gesto que denuncia a relação entre quem se matou e a sociedade que foi palco de seu ato, e o enigma é sempre a compreensão da mensagem deixada pelo suicida: por que se suicidou?

O suicídio resulta da sociedade em que estamos inseridos, da cultura, do momento histórico e do grupo social que pertencemos, e é um tabu em muitas localidades. Fenômeno multicausal, pode ser resultado da precarização do trabalho; do empobrecimento e do endividamento; das desigualdades de gênero e classe social; da homofobia e da masculinidade obrigatória; do sexismo e da misoginia; do racismo; de doenças; do sofrimento emocional e dos transtornos mentais; da falta de solidariedade e de vínculos sociais; das violências, do estigma e do preconceito, entre outras. Do lado de cá, o suicídio é um dos efeitos do capitalismo, do racismo e do patriarcado em um país periférico como o Brasil.

As consequências do suicídio são inúmeras, diretas e indiretas: além da morte e da perda da pessoa que tirou a própria vida, há impacto social, financeiro e psicológico à família e à sociedade em que o suicida estava inserido. Ainda, as pessoas próximas vivenciam sentimento de culpa e tristeza, isolamento social, sofrimento e doenças, além de serem frequentemente vítimas de estigma, exclusão e preconceito. Portanto, aqueles que ficam são sobreviventes e precisarão lidar com essas consequências por um tempo inestimável.

O comportamento suicida, embora faça parte da história da humanidade, é um ato prevenível, e muitas vidas poderiam ser poupadas com ações governamentais, individuais e coletivas. Em 2006, o Ministério da Saúde lançou as “Diretrizes Nacionais para Prevenção do Suicídio” e, nesse mesmo ano, foi lançado o “Manual de Prevenção do Suicídio” para profissionais das equipes de saúde mental. São estratégias que, embora importantes, não dão conta de reduzir a magnitude do problema, prevenir suicídios e proteger vidas, como percebemos diante do quantitativo crescente de pessoas que se suicidam por ano. É preciso mais.

Para a prevenção do agravo, é imprescindível compreender as especificidades de cada contexto, de cada localidade, com um diagnóstico situacional que evidencie as causas do suicídio. A Organização Mundial da Saúde [2], em 2000, lançou recomendações para prevenção, que envolve o estímulo à pesquisa, medidas para reduzir o acesso aos meios letais, melhoria dos serviços de saúde, cuidado de pessoas com ideação e tentativa de suicídio e reconhecimento precoce de sofrimento mental. Além dessas, foi ressaltada a importância do desarmamento e do controle da posse de armas de fogo, de barreiras em locais que possam induzir a queda, de controle da emissão do gás doméstico e de limitação do acesso a substâncias tóxicas. O fortalecimento da Atenção Primária em Saúde, das Redes de Atenção Psicossocial e do estabelecimento de relações solidárias, humanas e comprometidas com a vida também se constituem como estratégias importantes. 

É possível prevenir a antecipação do fim, mas para isso é fundamental a real compreensão do fenômeno e a produção de cuidado diante do absurdo apontado por Camus. O absurdo como um mal-estar diante de nós mesmos, uma colisão frontal com a falta de sentido do mundo. O retrato é estarrecedor, e é preciso solidariedade para segurar o céu que está caindo. No más suicidio.

Referências

  1. Canetto S. Women and Suicidal Behavior: a cultural analysis. Am J Orthopsychiatry 2008; 78(2):259-266
  2. Organização Mundial de Saúde (OMS). Prevenção do suicídio: um manual para profissionais da saúde em atenção primária. Genebra: OMS; 2000

(*) Professor da Universidade Federal de Santa Catarina

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21

 


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