Opinião
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25 de outubro de 2023
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20:15

Mais do que coincidências (por Céli Pinto)

Foto: UNICEF
Foto: UNICEF

Céli Pinto (*)

Em Israel, o governo de Netanyahu, após sofrer um ataque terrorista do Hamas que matou quase mil israelenses em seu território, impõe um estado de terror na Faixa de Gaza. Se vai acabar com o bem armado Hamas, não se sabe, mas é muito provável que irá dizimar a população palestina. 

Na Argentina, um esquisito indivíduo, até então desconhecido, vai para o segundo turno das eleições presidenciais, a despeito de se auto declarar anarcocapitalista e dizer que recebe conselhos políticos de seu cachorro, já falecido, através de um médium. 

No Rio de Janeiro, a vingança de uma facção da milícia contra policiais que mataram alguém de sua liderança provocou o caos na cidade, com o incêndio de 35 ônibus além de outros transtornos.

Em um primeiro momento, os três eventos parecem completamente desconectados entre si. Aconteceram em territórios muito diversos, têm diferentes magnitudes. Afinal há uma guerra que está matando muita gente no Oriente Médio, o que não e o caso dos eventos na América Latina. Mesmo no subcontinente, um caso é a eleição presidencial, outro é um ataque de milicianos, grupo fora da lei, que em tese deveria ser severamente combatido pelo Estado.

Apesar das abissais diferenças, esses eventos parecem ter pontos comuns, como a existência de populações miseráveis e desassistidas, além da completa desestruturação de um contrato político capaz de criar uma ordem mínima de bem viver.

A comparação entre os eventos tem limitações óbvias: Israel e Argentina são dois estados nacionais, o Rio de Janeiro é um estado da federação. É preciso também considerar que estamos frente a processos históricos muito distintos. Minha intenção aqui é apenas comentar a partir da fotografia de um momento, sem pretender explicar as raízes dos problemas em cada região.

Na Argentina, no estado do Rio de Janeiro e nos territórios palestinos, habitam populações pobres, desassistidas do mínimo necessário para a sobrevivência. São populações que não importam. Não se pode atribuir estas condições a uma falta de força dos estados para mudar tal quadro, mas, ao contrário, às vantagens – diretas ou indiretas – de manter estas populações à margem. No caso de Israel e do Rio de Janeiro, o domínio das populações por grupos terroristas, milicianos, narcotraficantes, deve ser analisado sem paixões. Na faixa de Gaza e nas comunidades e bairros pobres do Rio de Janeiro, as pessoas são deixadas à própria sorte, muitas vezes pagando preços muito altos pela proteção destes grupos. A contrapartida é variada: no Oriente Médio, o confronto do Hamas diretamente com Israel; no Rio de Janeiro, a entrada das milícias, bastante azeitada, nas entranhas das instituições do governo. Nos dois casos, quem mais sofre é a população pobre e desassistida.

A Argentina não experimenta uma guerra aberta, pelo menos no nível que acontece em outros territórios dominados pelo medo e pela pobreza extrema. Entretanto, assim como na Faixa de Gaza e no Rio de Janeiro, tem uma grande população pobre e desassistida. 

Não há coincidência nem destino no fato de que a pobreza extrema – fruto de desigualdades sociais, absurdas desigualdades de direitos, desagregação do contrato político – conviva com governos frágeis. Netanyahu, que sempre foi de direita, fez acordo com o extremismo de direita mais assustador da política israelense para se manter no poder nas últimas eleições. No Rio de Janeiro, o atual governador Claudio Castro é sobra, é resto de uma experiência neofascista protagonizada por um juiz obscuro que se entusiasmou com o ultradireitismo bolsonarista em 2018, mas não soube se equilibrar entre as forças que mandam no conturbado estado fluminense.

A mesma corrosão existe na Argentina, com um justicialismo disforme, uma União Radical de direita sem sua classe média, desidratada com a crise econômica e com o surgimento de uma extrema-direita que, para além de suas idiossincrasias patéticas, divide com as demais um total desprezo às condições dramáticas das populações pobres, condenadas à crescente precarização.

Nestes eventos, é possível verificar a presença de três variáveis estáveis: sistema político em crise; presença de forças políticas de extrema-direita e populações em situação de grande vulnerabilidade por sua pobreza.  Estas condições estão muito presentes nas três regiões consideradas, mas não se restringem a elas. Com maior ou menor intensidade, parecem estar se espraiando por parte significativa do planeta, sob a égide do capitalismo neoliberal do século XXI. 

Seria pouco razoável tirar conclusões definitivas a partir deste rápido ensaio. Mas, necessitamos  estar atentos para estes fenômenos que não são exceções em Israel ou na América Latina, mas que se tornam cada vez mais visíveis ao redor do mundo, mesmo que os contextos  sejam variados. Ao mesmo tempo, se faz necessário, mais do que nunca, colocar mais uma variável nesta equação: o capitalismo neoliberal em situação crítica. Nunca como hoje parece ser tão necessário para este capitalismo se reproduzir populações empobrecidas, desempregadas, desassistidas, governos militarizados e violentos que garantam industriais legais e ilegais que se alimentam de  guerras e de  grupos  de terroristas, de milicianos, de narcotraficantes. Para isto povos desalentados e  governos de extrema direita  histriônicos formam um caldo de cultura apropriado.

(*) Professora Emérita da UFRGS; Cientista Política; Professora convidada do PPG de História da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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