Opinião
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3 de outubro de 2023
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06:50

Letreiros de cinema (Coluna da APPOA)

Retratos Fantasmas. Foto: Divulgação
Retratos Fantasmas. Foto: Divulgação

Gerson Smiech Pinho (*)

Como qualquer grande cidade, por muitos anos Porto Alegre contou com a presença marcante dos cinemas de rua. Naturalmente integrados à paisagem urbana de uma dada época, tais espaços ostentavam imensos letreiros que revelavam os enredos e as narrativas que envolviam e atravessavam cada período de tempo. Afinal de contas, os filmes não deixam de ser porta-vozes das linhas de força, fluxos e intensidades que direcionam e movimentam a vida. Desse modo, os títulos e cartazes dos cinemas que eram vistos por quem circulava pelas calçadas, ruas e avenidas devolviam fragmentos daquilo que se experimentava no cotidiano, com sentidos que vão muito além do imediato. Funcionavam como operam as placas para quem transita por uma rodovia – indicando os caminhos que são atravessados e antecipando as trilhas para onde nos dirigimos.

Para quem viveu a adolescência e o início da vida adulta em Porto Alegre, em meio à efervescência cultural da década de 1980, o itinerário pelo bairro Bom Fim era fatalmente orientado pela presença dos Cines Baltimore e Bristol, justapostos como dois irmãos, um maior e o outro menor. A dupla que coexistia de mãos dadas na calçada da avenida Osvaldo Aranha forçava os olhares em direção a seus cartazes e letreiros, numa espécie de feitiço ao qual era difícil resistir. O Baltimore, com o passar do tempo, foi acometido por um curioso processo de desmembramento, dividindo-se em Baltimore 1, 2, 3, 4, sem que minhas lembranças consigam precisar exatamente até qual número chegou. De qualquer forma, desse modo multiplicaram-se não somente as salas mas também as opções de filmes disponíveis para quem era frequentador daquele espaço. Hoje, aquele mesmo local foi ocupado por um grande, imponente e moderno prédio comercial, também chamado Baltimore, restando o nome como parte da memória.

Não muito longe dali, na avenida Venâncio Aires, encontravam-se o Cine Avenida, na esquina com a João Pessoa, e o Cine ABC, com sua longa e extensa sala na qual aconteciam as bem frequentadas sessões da meia-noite. Foi ali que assisti a Blade Runner. Foi ali também que assisti a Betty Blue e a Asas do Desejo, entre tantos outros filmes. Era um período em que cada sala de cinema tinha sua singularidade, com traços marcados e personalidade própria, muito distantes das salas anônimas que proliferam nos shoppings centers atuais – memórias de quem circulou por esses recantos da cidade naquele período.

Estas lembranças dos cinemas da juventude vieram à tona quando assisti a “Retratos fantasmas”, de Kleber Mendonça Filho. Ao mesmo tempo que saí do filme tocado por muitas memórias dos tempos em que os cinemas de rua dominavam o cenário urbano, uma ideia presente na narrativa ficou reverberando – de que os letreiros daqueles antigos cinemas retratavam o que acontecia no mundo, traduziam em palavras o que ecoava nas cidades e entre as multidões. De fato, os cartazes dos cinemas que se espalhavam pelas ruas davam mostras das questões que borbulhavam na vida cultural de cada época. Como é dito no próprio filme, quase em tom de segredo, “os filmes de ficção são os melhores documentários”.

“Retratos fantasmas” é uma tocante produção sobre os espaços e as memórias que se associam a eles, desde o apartamento em que o diretor viveu até o centro da cidade que habitou. Fala sobre as transformações na paisagem da cidade de Recife, suas modificações com o passar dos anos, tendo como eixo o desaparecimento dos cinemas de rua, sempre com o atravessamento do olhar do diretor-narrador. 

Se os títulos e cartazes dos filmes refletiam a experiência de quem habitava as ruas da cidade em uma certa época, hoje seu lugar é dominado por outras letras e dizeres, como as placas e anúncios dos shoppings, das farmácias e dos templos religiosos. Sinais de outros tempos, de outras escolhas e propostas. 

“Retratos fantasmas” é um filme carregado de afeto, que expressa o amor pelo cinema, bem como a estima pelos que se dedicam a ele e com ele trabalham, do projetista ao vendedor de bilhetes. Conta a história de uma cidade através da vida e morte de suas antigas salas de projeção. Impossível não se encantar com esse filme, principalmente quando se aprecia e também se tem paixão pelo cinema e por suas produções.

(*) Psicanalista, membro da APPOA e do Centro Lydia Coriat

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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