Lucia Serrano Pereira (*)
Fora de casa, que labirinto. E quando a gente tropeça na desorientação?
Estávamos em Buenos Aires, cidade que tem essa mistura de estrangeiro com familiar. Várias idas e vindas, grandes amigos e charlas, e vinho. Muito curso, palestra e colóquio. Ou seja, cruzamentos de todos os tipos, do tango ao rock de garagem. Los Kamikazes del Rosedal era o nome da banda dos guris e do Daniel, onde sempre ficamos, Belgrano. Só pra dizer da junção quase interplanetária entre o japonês e o portenho.
Mas a banda era de rock mesmo, perto do metaleiro. Fusos e misturas que fazem o gosto das viagens, seja dos horários, do trânsito entre os psis, os músicos, mais os livros, as comidas e tal. Opa, se meteu uma história aqui na lateral dos souvenires. A viagem anterior. Era o dia da chegada à Europa, já com convite para jantar na casa de um casal de colegas franceses. Chegar, se arrumar e ir. Tá, vamos logo! Eu nervosa apressava o marido pois via que pelo tempo do táxi íamos chegar com dez minutos de atraso, e em casa de francês atraso pode ser pecado feio, pelo menos é o que circula desde o início dos tempos.
Corremos, chegamos, pedimos desculpas (afinal, passava dos dez minutos) eles nos receberam, acolhedores, e perguntaram delicadamente – aconteceu algo?
Nós – não, foi o táxi que se atrasou uns minutos, tudo bem. Eu pensei – não acredito! Não é que eles são mesmo gente que estranha minutos? Que loucura esses franceses…
E o jantar transcorreu, ótima comida e conversa, fora o fato de eu ter levado uns brincos de orelha furada para a anfitriã, e ela não ter furos nas orelhas. Ai meudeus francesas além de não engordar não furam as orelhas? Ao mesmo tempo ponta de mal-estar pensando que nós brasileiras é que seríamos olhadas como latinas furadoras de orelha…
Saímos quase uma da manhã (seria educado tanto tempo?), e dia seguinte sim, o sono da chegada sem compromisso, ia começar a aventura pela cidade. Hoje? Cinema! Vamos, tem sessão às 17; comemos e saímos. Les Halles, entramos na sala de cinema já tinha começado (que raro tão logo); passa um tempo e a gente estranha porque nada estava no início, a história já bem desdobrada; o que aconteceu? O filme está na metade, só pode. Então estamos errados no tempo…
Já é uma hora mais tarde, o anuncio da sessão estava errado… Será? Mas foi o comandante do vôo que anunciou ontem, eu ajustei a hora! Se o comandante errou ou se fomos nós pelo desencaixe da travessia do oceano não sei, juro que foi ele, mas aí aconteceu. A-con-te-ceu ( lembram o programa de rádio?). O raio que cai, a desgraça do Unheimliche freudiano (não disse que era bem do estranho/familiar que se tratava?), o arrepio do perigo. Ontem à noite… socorro! Chegamos na casa dos franceses UMA HORA e dez atrasados! Não deu pra segurar até o final da sessão, saímos voando, não tinha chip nem roaming no celular, telefone público, – Alô, Robert? EXCUSEZ NOUS! Entendemos agora o que aconteceu, chegamos para o jantar muito en retard! Tudo bem tudo bem, mas só restou rir e andar pela Montorgueil com a leve desconfiança de sermos olhados como os petites sauvages du Brésil…
Pronto, não disse? Me fui pelo labirinto e me perdi de Buenos Aires indo parar em Paris. Voltemos, a cena agora vai ser curta (já que Paris a roubou). Buenos Aires de novo. Estamos em um café de esquina, grande, movimentado, efervescente, nós lá já há horas e muitas cervezas, mesa cheia, amigos queridos. Hora de ir ao banheiro, me levanto e vou subindo as escadas, na verdade, luxo, que escadarias, como são lindos os lugares em Buenos Aires, com esses prédios de outro século…
Na subida, sinto a leveza da ocasião, do bem-estar do estrangeiro e das cervezas, vejo as duas portas e me passa rápido o pensamento – língua estrangeira, língua estrangeira. No centro da primeira porta em letra dourada de metal uma só letra: H. Sim, língua estrangeira. “Hembras”, penso. E adentro confiante no banheiro dos Hombres.
Horário, brincos e banheiro. Só me resta uma palavra: kamikaze, só. Sem rosedal.
(*) Lucia Serrano Pereira é psicanalista, membro da APPOA.
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