Opinião
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25 de outubro de 2023
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07:30

A inflação brasileira está superestimada? (por Flavio Fligenspan)

Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Flavio Fligenspan (*)

Os índices tradicionais de inflação ao consumidor são quase sempre superestimados. Por que? Para explicar isto, deve-se recorrer à engenharia da montagem dos índices. Eles são construídos com base em pesquisas sobre o padrão de consumo de famílias de uma determinada faixa de renda. Por exemplo, o IPCA (do IBGE, o índice mais usado atualmente no Brasil, porque é o que serve de base para o Banco Central acompanhar o sistema de metas de inflação e determinar a taxa de juros Selic) mede a evolução de preços de famílias com renda até 40 salários mínimos. Trata-se, portanto, de uma faixa bem ampla da população brasileira.

A ideia geral da construção de um índice é relativamente simples. Verifica-se, num período determinado, como a renda das famílias se distribui em vários itens de consumo, de bens e de serviços, como se fosse uma lista de compras – são as chamadas pesquisas de orçamento familiar (POF). Logo a seguir, se verifica qual o gasto total para adquirir os bens e serviços da lista num momento inicial, e, então, computa-se quanto custa comprar o mesmo conjunto de bens e serviços mês a mês. O aumento do gasto com a lista mostra quanto os preços aumentaram, em média, e a este aumento chamamos inflação.

Note-se um aspecto muito importante: o que varia mês a mês são os preços dos bens e serviços, não as quantidades; estas foram fixadas no momento em que se realizou a última POF. Os economistas chamam este tipo de índice de Laspeyres. É justamente aí que está o problema. Por que as quantidades são fixas? Porque seria muito caro e operacionalmente complexo refazer a POF todos os meses; ninguém faz isto. E se estima que as preferências das famílias – a lista de compras – não varia com tanta frequência. Mas nossa POF mais recente é de 2017/2018.

Ocorre que, quando os preços de determinados produtos ou serviços sobem, é comum as famílias substituírem estes itens por outros. Assim, por exemplo, se o preço da carne de gado sobe, se espera que as famílias comprem menos quantidade deste item e mais dos seus substitutos, como carne suína ou de aves. Isto muda a lista de compras – muda as quantidades –, mas não se realiza uma nova POF para captar tais mudanças. Ou seja, o índice de preços trabalha com quantidades fixas e, neste caso, se descola da realidade.

Quando as famílias fazem a substituição de itens que ficaram mais caros, elas buscam preservar seu orçamento, isto é, se proteger da alta de preços. E, ao tomarem tal atitude, acabam por gastar menos do que o índice estima, pois o índice trabalha com quantidades fixas, independentemente das variações de preços. No nosso exemplo, seriam quantidades fixas de carne de gado com preços mais altos, gerando um gasto maior. Mas, dada a substituição por bens que não aumentaram preços ou aumentaram menos que a carne de gado, o gasto não cresce tal como o índice estima. Assim que, num processo inflacionário, e supondo a substituição racional de produtos e serviços, os índices do tipo Laspeyres (quase) sempre superestimam o aumento do gasto das famílias, o que é dizer o mesmo, superestimam a inflação.

Atenta a esta questão, a Fundação Getulio Vargas lançou, neste ano, o Índice de Preços dos Gastos Familiares (IPGF), que segue uma metodologia reconhecida internacionalmente, diferente do IPCA. Nela, as quantidades não são fixas, captando a substituição que as famílias fazem naturalmente diante dos movimentos de preços. É claro que, a não ser em situações especiais – como nos momentos imediatamente seguintes às atualizações das POFs –, o IPGF varia menos que o IPCA e outros índices semelhantes ao consumidor. Para se ter uma ideia, o IPGF variou 3,63% no acumulado de 12 meses até setembro deste ano – última informação disponível –, e o IPCA, 5,19%.

Dado que o IPCA é o “índice oficial” de inflação do Brasil e, que o sistema de metas o utiliza como referência para ajustar a taxa de juros básica da economia, admitindo-se que ele é superestimado por natureza, imagine se a política econômica usasse um índice da família do IPGF para cumprir este papel. A inflação seria menor e teríamos mais um elemento para sustentar uma redução dos juros no Brasil.

(*) Professor Aposentado do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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