Opinião
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29 de setembro de 2023
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07:40

Ser tratado (quase) como…(por Selvino Heck)

Imagem: Pixabay
Imagem: Pixabay

Selvino Heck (*)

”Imagina se você fosse um jovem negro, e não um idoso e branco!” A frase me convenceu definitivamente, caras leitoras, caros leitores, a relatar os acontecimentos e uma experiência pessoal. E refletir mais sobre os tempos de hoje, repetindo a pergunta do último artigo: “2023, o pior ano de minha/nossas vidas?” 

Aeroporto Salgado Filho, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, 22 de setembro de 2023, sexta-feira, 10h da manhã, depois de uma madrugada de tempestade, muita chuva, como, aliás, tem acontecido nas últimas semanas, como quase nunca se viu em solo gaúcho, estou embarcando para Brasília: participar da Assembleia nacional do Movimento Fé e Política.

De manhã cedo, uma sexta-feira, antes de rumar para o aeroporto, ainda participei de uma importante conversa via redes sociais sobre o lançamento da Agenda Latino-americana e mundial/2024, que me acompanha todos os dias o ano inteiro, com frei José Fernandes, coordenador, e Nazaré Almeida, Secretária Executiva, em diálogo com Daniel Seidel, Secretário Executivo da Comissão Brasileira de Justiça e Paz. O tema da Agenda/2024 é: “Decolonizar o mundo e a vida: missão libertadora”.

Estava sentindo-me abençoado, mas nada preparado para tudo que aconteceu depois.

Passei normalmente pelos controles do aeroporto, bagagens e tudo mais. No final, quando vou pegar as malas e pertences, um apito estranho. Alguém aproxima-se e fala: “Não te preocupa. Nada demais. Apenas um aviso. Espera um pouco.” Digo: “Espero, se entender o que está acontecendo. Tenho voo em seguida.” Ele: “É uma revisão normal e aleatória. Por isso, o apito e o aviso. Não significa que o senhor tenha algo escondido ou uma arma.”

Espero, tranquilo, sem lembrar, em tantas viagens aéreas por todo Brasil, especialmente nos anos 2000, de algo semelhante. 

Pedem para abrir a mala e sacola que carrego comigo. Abro. Tudo é remexido. Nada encontrado, espero poder dirigir-me para o portão de embarque. Chega outra pessoa: “Precisamos fazer uma revista pessoal do senhor.” “Como assim? O que significa isso? Minhas malas já passaram pelo controle pessoal, assim como eu passei, minhas bagagens foram revistadas, tudo certo, nada encontrado.” A pessoa pergunta, alguns guardas me cercando, os demais passageiros passando ao meu lado: “Posso, podemos fazer? Permite?” “Como assim, não estou entendendo.” Resmungo, um tanto atordoado, sem entender o que está acontecendo, não digo nem sim nem não. Repito, um tanto nervoso e confuso: “Expliquem o que está acontecendo, não estou entendendo.”

A resposta: “Já que o senhor não está permitindo a revista pessoal, vamos ter que chamar a Polícia Federal.” Digo: “`Polícia Federal, pra que? Eu não disse nem sim nem não, porque não estou entendendo. Mas se é preciso fazer, façam de uma vez. Preciso tirar a roupa?” Resposta: “Vamos esperar a chegada da PF. Só depois fazemos.”

Atordoado, confuso, com explicações ou justificativas mal dadas, ou pela metade, fico sem saber o que fazer. Espero uns 10 minutos pela chegada da Polícia Federal. Resmungo de novo: “Mas quando vão chegar? Façam de uma vez. Preciso embarcar daqui a pouco.”

Finalmente, chegam três ou quatro policiais federais, que postam-se em semicírculo ao meu redor, me olhando, eu me sentindo um (quase) perigoso bandido, traficante de drogas ou armas, ou sei lá o que. Tudo e nada passa-me pela cabeça. Perguntam: “Temos uma salinha aqui ao lado. Quer ser revistado lá?” “Claro que não. Façam o que precisarem aqui mesmo, no meio de tudo mundo. Se preciso tirar a roupa, tiro, sem problemas.”

Fazem minha revista pessoal, alto a baixo, frente e costas, meio das pernas, como vi algumas vezes fazerem em jovens ou em pessoas suspeitas encostadas na parede em determinadas situações, ou com os braços encostados no capô do carro, especialmente de noite e madrugada. Pedem que eu tire os tênis, para uma revista específica.

Finalmente, tênis de volta, mais ou meia hora depois, já quase sem saber qual era o portão de embarque, sou liberado. Estou livre e solto (Ainda bem que  saí cedo de casa. Chamei o táxi antes do previsto. Uma live do Conselho Deliberativo do CAMP, Centro de Assessoria Multiprofissional, marcada para as 8h30m, acabou desmarcada na última hora).

Embarco, cabeça cheia de bons e maus pensamentos, com longa escala no aeroporto de Guarulhos, SP. Não consigo ler com calma as mensagens de Whatsapp, ou entrar na internet, para passar o tempo. Caminho pra cá e pra lá, esperando chegar em Brasília o mais rápido possível, jantar, encontrar e abraçar companheiras e companheiros, participar da mística de abertura da Assembleia, da análise de conjuntura da Pastora luterana Romi Bencke, coordenadora do CONIC, Conselho Nacional de Igrejas Cristãs: acalmar-me, acalmar o coração. 

Pastora Romi e participantes falaram com justeza, na análise de conjuntura, da violência do cotidiano, da ausência e/ou dificuldade de diálogo crescente entre pessoas, mesmo entre familiares, comunidades e na sociedade, da gravidade do que está acontecendo no Brasil e no mundo, em meio às mudanças climáticas, dos ciclones e suas consequências no Rio Grande do Sul, da urgência do cuidado com a Casa Comum, etc., etc., etc.

Concluída a abertura da Assembleia, é noite, alguns saem para o espaço das refeições do local de hospedagem, ao lado de muitas árvores, noite quente na capital brasileira. Servem boa paraibana, cachaça por óbvio, que o companheiro Nelcimar e outros sempre trazem, sabendo que gosto muito delas, das cachaças, em especial a Triunfo. Desta vez, chegaram, aas cachaças, em mais que boa hora.

Não me seguro, a angústia e mil dúvidas ainda batendo. Preciso falar, desabafar, contar tudo que aconteceu, livrar-me da “culpa” ou de não sei que mais. Vejo sorrisos nervosos, olhares surpresos, e o principal, solidariedade. O paraibano Lisboa, de Campina Grande, faz a pergunta certa na hora certa, que estava na cabeça de todas e todos da roda: “Imagina se você fosse negro, e não um branco e idoso!”

Quem, amadas leitoras, amados leitores, já passou por algo parecido? Eu, nunca! Comecei a entender, espero que definitivamente, o que passam jovens negras e negros, mulheres, adolescentes, ou qualquer pessoa ´atacada´ na rua por ser considerada suspeita,  revistada alto a baixo, muitas vezes sem razão, mãos e braços na parede ou no capô do carro. E finalmente liberada: não havia motivo ou justificativa para a revista.  Senti e sofri tudo na pele, doendo até hoje no corpo, na alma, no coração.

Agora, depois de todo sofrimento e da experiência dolorida, que me fez aprender muito e, espero, a ser mais sensível e solidário, é tempo e compromisso ainda maior de preparar o 12º Encontro Nacional Fé e Política, que acontecerá dias 5, 6 e 7 de abril de 2024, em Belo Horizonte, MG, com um tema mais que atual: ESPIRITUALIDADE LIBERTADORA: ENCANTAR A POLÍTICA, COM ARTE, CULTURA, DEMOCRACIA.

Volta-me a pergunta do último artigo: 2023 é ou não é, por acaso, o pior ano de minha/nossas vidas? Uma frase minha, proclamada várias vezes na Assembleia nacional do Movimento Fé e Política, e repetida na mística final, com lágrimas nos olhos, pela companheira, jovem negra, Erika serviu e serve de acalanto e acalento todos os dias: “TAMO VIVO!”

(*) Deputado estadual constituinte do Rio Grande do Sul (1987-1990). Membro da Comissão Ampliada nacional do Movimento Fé e Política

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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