Opinião
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26 de setembro de 2023
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07:12

As fotos da festa ficaram ótimas (Coluna da APPOA)

Foto: Pixabay
Foto: Pixabay

Luciano Mattuella (*)

O leitor que estiver mais ou menos na minha faixa de idade certamente vai se identificar com a seguinte cena: você está em uma festa com seus amigos, talvez já um pouquinho mais pra lá do que pra cá, e alguém aparece com um câmera cybershot (lembram?) dizendo algo como: “Vamos tirar uma foto, junta todo mundo aí”. 

Você e seus amigos se acomodam em uma formação grupal mais ou menos organizada. O primeiro critério, em geral, é altura: os mais altos vão atrás. Esta decisão é simples, a genética já resolveu. Depois, começam as pequenas nuances: quem bota a mão no ombro de quem? O que significa estar tocando o corpo do outro em uma foto tirada em uma festa? Qual a narrativa contada por duas pessoas abraçadas ternamente? Aquele conhecido recém chegado ao grupo, será que ele vai ficar no centro da foto? Ou sua posição social vai estar refletida no lugar na foto, sendo destinada a ele a ponta quase fora do enquadre?

Não estamos falando apenas de uma foto, mas da suposição de um olhar que vai interpretar esta imagem. E é aí que a coisa, já naquela época, complicava. 

Mesmo há tantos anos, já havia toda uma curadoria, um controle sobre a narrativa que gostaríamos que fosse mostrada. Aliás, todo bom fotógrafo sabe disso: uma imagem sempre conta uma história. Mesmo porque não são todos os momentos dignos de serem clicados. Até aquelas imagens do mais banal cotidiano foram escolhidas, foram recortadas do fluxo das coisas. Uma foto é profunda, narra uma complexidade.

Não fosse assim, não haveria aquele momento seguinte ao fatídico clique: os fotografados se amontoavam em volta da câmera para ver na pequena tela a história que havia sido capturada. Alguns não ficavam à vontade com as olheiras aparentes, não queriam se mostrar cansados. Outros não se sentiam bem por estar ao lado de algum desafeto, não queriam passar a mensagem de que tinha havido uma reconciliação.

Em caso de insatisfação, alguém dizia: “Podemos tirar outra?”. Em geral, o pedido era bem aceito: todos já haviam estado na mesma situação.

Agora imaginemos o contraste com uma festa hoje em dia. 

Amigos reunidos, música rolando, copos na mão… então alguém puxa o celular do bolso. Está vendo alguma mensagem recebida? Ficou entediado e foi dar uma olhada no Instagram? Ou vai tirar uma foto? Sim, vai tirar uma foto. Braço erguido, câmera frontal apontada para um grupo que rapidamente procurar fazer parte do enquadre na tela. O fotógrafo em primeiro plano, mas deixando espaço suficiente para que todos apareçam. Da forma como estiverem naquele momento, mas todos têm que aparecer.

Já de cara, temos uma mudança de olhar: aquele que tira a foto está dentro da imagem. Não há ninguém “por trás” da câmera – do celular, no caso. Mas será que não há, mesmo? Quando estão todos dentro da cena, talvez possamos pensar que o olhar que enquadra é mais fugidio, é abstrato, é um olhar que não vem de lugar algum. 

Isso ganha ainda mais força quando sabemos que boa parte das fotos tiradas podem acabar indo parar nas redes sociais. E, se algo pode acontecer, nós agimos como se necessariamente fosse acontecer. Quando supomos que pode haver uma câmera em qualquer lugar – todos temos celulares hoje em dia -, nossa tendência é agirmos como se estivéssemos sendo fotografados o tempo todo. Se pode ser a qualquer momento, então pode ser a todo momento.

Mais do que um simples ato de reter uma recordação, a lógica das redes sociais acabou por definir uma nova forma de viver o mundo, de estar presente. Exemplo claro disso é que as fotos de hoje são todas tiradas com a câmera na vertical – se você olhar para seus álbuns de outras épocas, provavelmente a maior parte dos enquadres é horizontal. Um story de Instagram acompanha o formato do celular, é na vertical. Mais ainda: cada vez mais vemos passos de dança contidos, como se as pessoas estivessem presas dentro uma cela invisível: é o formato dos vídeos do TikTok. Ou seja, as grades das redes sociais não estão mais restritas ao mundo digital, elas agora restringem e constrangem na concretude do mundo. 

E estamos falando aqui também de grades metafóricas, claro. 

Claro que nós sempre fomos um tanto quanto reféns dos olhares dos outros – até porque são esses olhares que nos definem, que dizem quem somos – mas, nos dias de hoje, partimos do pressuposto de que alguém estará o tempo todo com um celular na mão, tirando fotos ou, pior, fazendo vídeos.

Talvez nem estejamos no primeiro plano da cena, podemos ser aquela silhueta lá no fundo. Uma silhueta que pode tropeçar, que pode estar com a camisa amarrotada, com o cabelo despenteado, com a maquiagem borrada. Ou simplesmente que não queria estar na foto.

Desde que as redes sociais se tornaram a ferramenta principal em que registramos a nossa história, a nossa imagem deixou de ser nossa.

Na época das cybershots, havia mais de shot do que de cyber. A internet ainda não era o que é hoje, não nos preocupávamos que a nossa vida fosse instagramável. E não adianta dizer que exista alguém tão fora dessa lógica: as redes sociais não são um universo no qual se escolhe ou não entrar, mas elas produzem uma forma de subjetivação que nos implica a todos, queiramos ou não. 

Afinal, em outros tempos, um álbum de fotos de casamento ou qualquer outra festa provavelmente só seria visto por meia dúzia de pessoas, os mais chegados. Hoje em dia, não sabemos o endereçamento das fotos que são tiradas de nós. Podemos ser marcados por alguém que mal conhecemos, ou mesmo sequer venhamos a saber que saímos em algum vídeo.

Muito tempo depois, nos vemos como aquelas pessoas de outras época que tinham receio de que a câmera fotográfica aprisionaria as suas almas. Só que agora precisamos também ser prisioneiros bem vestidos.

(*) Luciano Mattuella é psicanalista, membro da APPOA.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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