Opinião
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1 de agosto de 2023
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07:15

Openheimer, sonhos, pesadelos e IA (Coluna da APPOA)

Imagem: Pixabay
Imagem: Pixabay

Robson de Freitas Pereira (*)

Hoje em dia, é comum o equívoco: alguém vai relatar um sonho e diz: “tive um filme”, ou “este sonho parece um filme”.  Filmes e sonhos frequentemente se confundem nos relatos das pessoas. Talvez, pela influência que o cinema teve (e ainda tem) na constituição de nossa subjetividade. Aprendemos a amar, nos relacionar, imaginar utopias e enfrentar a realidade levados pelo olhar de uma câmera. Além disto, muitos cineastas buscaram incorporar a psicanálise às imagens cinematográficas. Desde “Segredos de uma alma” (1926), de Pabst, passando por Buñuel e Hitchcock que os sonhos fazem parte do cenário fílmico. Com o avanço da tecnologia, isto ficou cada vez mais evidente.

Um sonho é estruturado por muitos elementos; entre eles os “restos diurnos”: detalhes dos acontecimentos cotidianos que vão se transformando e condensando durante o sono e se misturam aos elementos inconscientes. 

Tudo isto para fazer aproximação com uma ida ao cinema para assistir Openheimer, novo filme de Christopher Nolan. Sala lotada. Uma hora antes, ingressos esgotados. Surpresa boa. Há pouco tempo, mesmo os blockbusters não conseguiam atrair o público. O medo dos efeitos da pandemia ainda era expressivo e afastava as pessoas das salas escuras de projeção (e cada vez mais afeitas ao conforto e segurança do streaming caseiro). Bilheteira e atendentes também comentavam a afluência de gente, nas sessões vespertinas e noturnas; surpresos e animados com a intensidade do movimento.

Algumas associações anteriores à chegada ao cinema: nos anos 60, Stanley Kubrick realizou: dr. Strangelove or how I learned stoped to worrying and love the bomb”, com Peter Sellers. No Brasil: Dr. Fantástico. O subtítulo foi esquecido. Até que recentemente, a revista Wired [¹] (que ainda mantem edição impressa; além da online claro) publicou uma longa (e boa) entrevista com o diretor intitulada: how nolan stoped to worry and love the AI. Parafraseando o título do filme de Kubrick e, de certa maneira, reconhecendo a posição de Chris na linhagem dos grandes diretores da atualidade. Também fazendo uma provocação com este que se considera um dos “últimos dos moicanos” em termos da utilização dos recursos analógicos no cinema. Em suas próprias palavras: “um velho e enferrujado cineasta analógico” (“very much the old analog fusty filmmaker.”). Apesar dessa declaração, uma tecnologia de ponta (leia-se inteligência artificial, algoritmos etc.) está onipresente para nos contar, em alta qualidade de som e imagens em movimento, a história e as histórias deste prometeu norte-americano, como diz o título de umas das biografias em que Nolan se embasou para construir o roteiro.

Com esta articulação de técnica e talento assistimos um filme impactante; visual, roteiristicamente e com algumas excelentes interpretações – atenção para Robert Downey Jr. Dois de nossos jovens decanos da crítica (Eneas de Souza e Helio Nascimento) recomendam o filme, o consideraram bem realizado sem ser obra prima, mas que certamente vale a ida ao cinema.  Por muitas razões (vamos evitar spoilers e conter o impulso de falar sobre aquela cena da…); em especial pelos temas que questionam e analisam nossa complexa atualidade tanto individual quanto sociopolítica.  

Chris Nolan declarou que ao fazer um filme sobre um personagem e uma conjuntura histórica, gostaria de provocar um pensamento sobre a responsabilidade nos cientistas de hoje, sobre os efeitos da ciência e tecnologia. Por exemplo, como enfrentar eticamente os dilemas morais e discussão sobre efeitos da IA e ChatGPT. Segundo Nolan: “O maior perigo da IA é o fato de lhe atribuirmos estas características divinas e, por conseguinte, de nos deixarmos iludir”, e complementa; “Nisso, eu identifico o perigo de abdicarmos de nossa responsabilidade”. 

Esta ideia faz ressonância com as elaborações de Yuk Hui que em artigo recente [²] afirma que há um equívoco em colocar a discussão sobre IA e ChatGPT em termos finalistas. Dizendo muito rapidamente; o entusiasmo ou medo provocado pelos avanços tecnológicos fazem parte de nossa história. Em certo sentido são inevitáveis. As primeiras imagens cinematográficas da chegada do trem na estação ou o primeiro desastre ferroviário filmado, provocaram pânico nos espectadores.  Isto não quer dizer que devemos negar os perigos evidentes – embora ainda haja quem negue as mudanças climáticas, por exemplo. Entretanto, argumentações utópicas ou distópicas a respeito do nosso futuro (ambas com fundo teológico) não levam em conta que nossas relações e os conflitos que enfrentamos nelas são mais complexos e paradoxais do que supõem nossa “vã filosofia”. As condições de vida são paradoxais: não é logica linear – a psicanálise, a matemática, a física ajudam a demonstrar isso. Causa e efeito direto fazem parte de um ideal de controle que para se realizar precisa de um telos finalista. Esta é a armadilha; para garantir uma resposta definitiva contra nossos medos, abrimos mão de sonhar, de “inventar paraquedas coloridos” nesta trajetória de incertezas. Por isto, bem-vindos os sonhos compartilhados, estamos de volta ao futuro.

Notas

[1] Wired, Jul/Aug, 2023, by Maria Streshinski. Acessível neste endereço 

[2] Chat Gpt or the eschatology of machines” in E-flux journal ,n. 137.  

(*) Robson de Freitas Pereira é psicanalista; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). Publicou, entre outros: O divã e a tela – cinema e psicanálise (Porto Alegre: Artes & Ofícios, 2011) e Sargento Pimenta forever (Porto Alegre: Libretos, 2007).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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