Opinião
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5 de julho de 2023
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14:41

Os caranguejos da Redenção (por Ana Maria Dalla Zen)

Ato
Ato "Abraço em Defesa da Redenção Pública". ( Foto: Joana Berwanger/Sul21)

Ana Maria Dalla Zen (*)

Quem diria? Caranguejos na Redenção! Pois é, foram aparecendo aos poucos, lá por outubro de 2022, e não pararam de crescer. Hoje são mais de 40.000, e a cada dia aumentam mais! Sim, caranguejos são aquelas pessoas que estão cada vez mais preocupadas com o parque da Redenção, ou parque Farroupilha (entre os dois, preferimos o primeiro, por nos representar melhor). Eles foram surgindo na medida em que passaram a acontecer coisas tristes nesse que é o coração verde da cidade. 

Apesar de sua condição de patrimônio histórico, cultural e ambiental de Porto Alegre, os caranguejos estão muito preocupados  com as ameaças que a cada dia vêm ocorrendo no espaço  do parque, hoje reduzido a 37 dos seus 69 hectares iniciais. Primeiro, foi a destruição do orquidário, espaço tradicional dentro dele, criado em 1953, que reunia centenas de espécies de orquídeas. Integrado ao imaginário popular, foi tão afetuosamente apadrinhado pelos moradores da cidade, a ponto que muitos pediram que, após suas mortes, tivessem as  suas cinzas fossem aspergidas sobre as flores. Mesmo assim, foi destruído, para dar lugar a um estabelecimento comercial, na forma de um espaço gourmet, chamado Refúgio do Lago. 

Em fevereiro deste ano, os caranguejos se reuniram, chocados, ao verificarem que nesse novo empreendimento haviam sido colocadas armadilhas para capturar gambás, como foi fartamente anunciado pela imprensa. Sim, eis que esses animaizinhos, que viviam felizes em seu habitat, passaram a ser perseguidos, para talvez ser  levados para outro lugar, como se não fossem os proprietários do parque.  Você sabia que eles são capazes de comer quatro mil carrapatos estrela, que transmite a febre maculosa? E que fazem dos escorpiões o seu alimento preferido? 

Só que, desde então, os caranguejos já identificaram mais de doze gambazinhos mortos ou agonizando, o que não ocorria anteriormente. Qual seria a causa mortis? A resposta não cabe aos caranguejos, mas à administração municipal, que até agora não se manifestou.  A missão de abrir boletins de ocorrência (BOs) para denunciar essas mortes já foi feita, num total de cinco ocorrências, sem levar em conta outros gambás que morreram sem qualquer identificação. Os caranguejos também sabem que há tutores de animais ferozes que gostam de soltar seus animais à noite, para serem treinados para perseguir gambás e até mesmo tartarugas. A respeito disso, temos o testemunho de pessoas que já presenciaram  essa triste situação e seus responsáveis.  

Ao falar nas tartarugas, coitadas, sofreram diretamente com a retirada de todos os  juncos  e arbustos ribeirinhos ao lago dos pedalinhos, a fim de não atrapalhar o negócio. Isso foi feito sem levar em consideração os animais, que faziam deles o seu espaço de descanso. Deve ser lembrado, em relação a isso, que os passeios de barcos são realizados há décadas no local, e nunca exigiram essa limpeza. Então, perguntam os caranguejos, por que só agora foram higienizadas as margens. Pobres tartarugas e cágados, pobre Parque!

Muito desolados, os caranguejos pedem que isso seja solucionado. Há poucos dias, viram a imprensa noticiar que o esgoto cloacal do Refúgio do Lago, ao que parece, estava sendo lançado no pluvial, destinado a coletar exclusivamente a água das chuvas. Será? Os caranguejos não sabem, pois não lhes compete investigar, nem foram informados sobre o problema.

Para piorar ainda mais, há cerca de uma semana, foi instalado um contêiner ao lado esquerdo do Monumento do Expedicionário, destinado  a ser sede da guarda municipal, alegando que isso serviria para dar mais segurança ao parque, a pedido da população. Sim, os caranguejos acham importante a segurança, não podem ser contra. Porém estão bem cientes que a violência urbana está presente em toda a cidade, e não é maior no parque. Mas esse horroroso elefante branco precisava ser construído nesse espaço, bem ao lado daquele que é o monumento mais importante e conhecido da Redenção? Como ficam as fotografias dos turistas que acorrem todos os dias ao local para registrar a sua beleza e imponência? E a coitada da paineira que teve parte de seus galhos amputados para dar lugar a esse elefante branco?  Ele não poderia ter sido instalado num local mais adequado?  Será que  esse é local onde  acontecem mais assaltos,  roubos e furtos? Os caranguejos têm dúvidas em relação a isso. 

Afinal, quem são esses caranguejos, considerados intrometidos? São aquelas pessoas que, preocupadas em preservar o patrimônio histórico, cultural e natural da cidade, sendo também frequentadoras assíduas da Redenção, estão alertas em relação às ameaças e agressões que não apenas o parque, mas a cidade e suas mais significativas áreas verdes vêm sofrendo. Algumas dessas pessoas indignadas passaram a ser conhecidas como “as véias das arvores e dos gambás”, dentre as quais eu me incluo.

 Hoje, após audiência na Câmara para tentar sustar o processo de concessão do parque da Harmonia, novamente os caranguejos foram lembrados.  Aliás, os caranguejos nem andam para trás, e sim para os lados, talvez tentando achar uma saída para o descaso que a cidade enfrenta. O que dizer da concessão não apenas da Redenção, mas também do Lami, com sua beleza natural intocada, ou ainda do parque Marinha? E os cortes de árvores sadias, podas fora de época, que se tornaram cotidianos? 

Tudo isso está assustando os coitados dos caranguejos, como parte do processo de gentrificação que está ocorrendo em Porto Alegre. Criado a partir da ameaça de concessão da Redenção à iniciativa privada, o Coletivo Preserva Redenção acolhe esses caranguejos, que, erroneamente considerados avessos ao progresso, apenas querem que o patrimônio de Porto Alegre seja respeitado, seja ele cultural, histórico ou natural. Desse modo, os caranguejos podem até andar para trás, mas olham direto para o futuro, na busca de alternativas para que as próximas gerações encontrem uma cidade digna de seu nome, que reconquiste a condição de ser um porto bem mais alegre do que o atual. 

Assim, graças aos caranguejos, podemos ainda sonhar com a recuperação de Porto Alegre, que fazia jus à condição de uma das capitais mais arborizadas do País, com uma qualidade de vida de dar inveja. Isso não é retorno ao passado, mas expectativa de um mundo melhor.

(*) Professora titular aposentada da FABICO/UFRGS. Membro do corpo docente do Programa de Pós-graduação em Museologia e Patrimônio/UFRGS, área de Patrimônio e Cultura.. Membro do Coletivo Preserva Redenção. Email: [email protected] 

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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