Opinião
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18 de julho de 2023
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07:00

O lugar – a escrita como forma de reestabelecer um amor que se quebrou (Coluna da APPOA)

Reprodução
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Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr (*)

Ler e reler Annie Ernaux é sempre uma oportunidade de encontrar algo de nós mesmos em seus livros. Inevitavelmente, após a leitura, uma diferença se inscreve. Talvez isso seja um dos motivos pelos quais a sua escrita tenha despertado o interesse de alguns psicanalistas. Não tenho a pretensão de saber o porquê isso ocorre. Entretanto, arriscaria dizer que a estética de sua escrita, além de evitar apelos dramáticos, julgamentos ou adjetivações de seus personagens, parece tocar alguma dimensão da verdade da história de cada leitor.  

Há também outro aspecto da posição de Ernaux que é familiar ao lugar do analisante no transcorrer de seu percurso de análise, a saber: as tentativas de rememorar os detalhes de nossas vidas; a defrontação com o impossível, pois a memória é ficcional e evanescente. Mesmo ciente disso, a autora não se exime da importância desse trabalho de recordar, repetir e elaborar a história. 

Na abertura do livro O lugar, o leitor se depara com a narradora descrevendo a prova que fora submetida para ser reconhecida como professora de letras. Entre ponderações, críticas e elogios, ela é aprovada pelo júri composto pelo professor inspetor junto de seus assessores. Logo após a avaliação, sente um misto de raiva, vergonha, alegria, e decide comunicar aos seus pais o resultado exitoso de sua experiência. No entanto, rapidamente, a felicidade pela conquista de um novo lugar social é recoberta pela frase: “Meu pai morreu exatamente dois meses depois desse dia. Ele tinha 67anos”. 

Ernaux, entre tantos detalhes dessa dor inigualável da perda de um pai, convida o leitor a respirar fundo para mergulhar na leitura, pois ela irá narrar o antes, o durante e o depois desse “sufocante mês de junho” da morte de seu pai. Foi num domingo, no começo da tarde que sua mãe, sem qualquer espécie de transbordamento, lhe deu a notícia com uma única palavra. “Minha mãe apareceu no alto da escada. Ela enxugava os olhos com o guardanapo que provavelmente tinha levado consigo para o quarto depois do almoço. Disse em um tom neutro: Acabou”. 

A partir daí, vamos percebendo que O lugar – aquilo que parecia apenas situar o local de trabalho do pai, a mercearia-café, onde ele, junto com sua mulher eram proprietários, e a autora teria passado sua infância – era, na verdade, muito mais do que isso. O livro vai resgatar a história de vida do pai, colocando em movimento uma forma de reconstrução e de reparação do lugar dele na vida dela. Desse modo, o luto pela sua morte, engendra, através da escrita, um acerto de contas com ela mesma. O amor e as diferenças intransponíveis entre eles coabitam lado a lado numa retrospectiva que busca restituir alguma dívida com o outro. Talvez por isso, tenha me chamado a atenção a epígrafe de Jean Genet, escolhida pela autora “arrisco uma explicação: escrever é o último recurso quando se traiu”. 

O desenvolvimento social, político, cultural, os costumes, as diferenças linguísticas e a paixão pela leitura, contrastam a realidade da autora com a vida simples do pai. Tanto a obtenção do diploma, quanto os valores e a linguagem dos novos espaços de circulação, de um lado pareciam demarcar a emancipação de seu antigo meio provincial; de outro, acentuavam a distância do pai. Essas diferenças a faziam sentir uma sensação de exilio interno.  

Ciente de sua ascensão burguesa, podemos acompanhá-la narrando a morte do pai ao mesmo tempo que resgata os detalhes da dura trajetória de um homem oriundo de família pobre. Além das privações de sua infância, ele teria sido obrigado a abandonar a escola aos 12 anos para trabalhar no campo e ajudar a família. Segundo a autora, seu avô, apesar de fazer contas, não sabia ler nem escrever, tampouco gostava de ver alguém fazendo isso, inclusive, chegava a ficar violento ao constatar algum familiar com um livro ou um simples jornal. Esses fragmentos da história de seus antecedentes são alguns dos elementos que justificam a sensação de corte sentido pela autora entre suas origens e o universo de intelectualidade que sua vida cultural viabilizou. 

Entre tantos exemplos no livro, pode-se destacar a surpresa da autora em comparar a vida de alguns autores que lhe eram caros (Proust e Moriac) com a realidade da juventude do pai. Ou seja, a disparidade era tamanha a ponto de não poderem ter pertencido a mesma época. “Quando leio Proust e Moriac, não consigo acreditar que eles se referem à mesma época em que meu pai era criança. O ambiente em que meu pai vivia era medieval”.

A obra dedicada ao pai, começa após a sua morte em 1967, quando Ernaux visita seus pais com o seu filho ainda criança. A decisão de escrevê-la teria ocorrido somente no verão seguinte. Enquanto aguardava para assumir seu primeiro cargo de professora, ocorreu-lhe a ideia de que algum dia teria que explicar essa relação entre eles. A citação a seguir segue o desdobramento desse pensamento. Mais do que isso, situa a posição ética da autora no encaminhamento de seu livro, especialmente, no estilo de escrita que pudesse ser condizente com a memória do pai. Vejamos:

“terei que escrever sobre meu pai, sobre a vida dele e sobre essa distância entre nós dois, que teve início em minha adolescência. Uma distância de classe, mas bastante singular, que não pode ser nomeada. Como um amor que se quebrou. Em seguida, comecei a escrever um romance cujo personagem principal era ele. No meio da narrativa, tive uma sensação de mal-estar. Só há pouco percebi que escrever o romance é impossível. Para contar a história de uma vida regida pela necessidade, não posso assumir, de saída, um ponto de vista artístico, nem fazer alguma coisa ‘cativante’ ou ‘comovente’. Vou recolher as falas, os gestos, os gostos de meu pai, os fatos mais marcantes de sua vida, todos os indícios objetivos de uma existência que também compartilhei”. [1]

Para Ernaux, escrever um romance seria uma traição à memória do pai. Há um impossível em jogo, como se ela estivesse decidida em uma busca da realidade, resistindo, assim, aos apelos emotivos e à narrativa ficcional. Quando leio essa passagem fico tocado com a dignidade de uma autora que reconhece a impossibilidade de romancear a escrita de alguém que teve a sua vida regida pela necessidade. Por outro lado, reconheço, também, certa impossibilidade de dizer o que é um pai.

Cabe observar que a atmosfera de O lugar, especialmente as lembranças da infância e da juventude da autora, estão ambientadas no cenário do pós-segunda guerra. As recordações do frio, da fome e da destruição ainda eram muito presentes. Ernaux, chama atenção para os marcos narrativos do antes, do durante (período de ocupação nazista na França) e o depois da guerra. Nesse aspecto, pode-se inferir que a vida regida pela necessidade também dizia respeito ao contexto da época.

Ao retomar um dos momentos marcantes de sua vida, Ernaux procura a palavra justa para descrever a experiência. Como ela mesma já disse, seus livros buscam refazer o caminho de sua história tocando o real através da escrita. Portanto, estamos diante de um livro potente. Ao mesmo tempo em que a obra é o testemunho de um amor que se quebrou, é também a clara declaração de amor ao pai.

[1] Ernaux, A. O lugar. São Paulo: Fósforo, 2021, p.14.

(*) Psicanalista, membro da APPOA e Instituto APPOA, doutor em Psicologia Social e Institucional – UFRGS.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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