Opinião
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20 de julho de 2023
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11:19

Desenrola, mas não cura o vício brasileiro do dinheiro caro (por Milton Pomar)

Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil
Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Milton Pomar (*)

 O fato de haver 70 milhões de pessoas “negativadas” no Brasil levaram o governo federal a iniciar dia 17 de julho o programa emergencial “Desenrola”, visando facilitar a negociação de dívidas e assim “limpar o nome” dessa parcela da população. Pelas características da situação, enxuga a ferida, mas não estanca a sangria, já que a causa segue em céu de brigadeiro – em julho de 2023 o cartão de crédito da Caixa Econômica Federal cobra 312,31% ao ano no rotativo e 454,98% ao ano para saques. O cartão NU cobra 17,1% ao mês por atraso, que anualizados atingem inacreditáveis 570,17%. Cartões das demais empresas estão nessas faixas.

Coincidentemente, devem a cartões de créditos 86,8% de quem está inadimplente no País – parcela recorde de 79,6% das famílias em maio de 2023. Por isso, chega a ser patético o debate sobre os “13,75%” da taxa Selic imposta pelo Banco Central, como se essa fosse a taxa cobrada pelo “mercado”. Apesar disso, a propaganda é que essa situação desastrosa no País tem a ver com “falta de educação financeira” da maioria da população. Ou seja, a culpa é das vítimas, que cedem ao “canto de sereia” das empresas de cartões de crédito e de empréstimos, que bombardeiam diuturnamente todas as pessoas que conseguem acessar, para vender um poder de compra que a grande maioria das pessoas não têm.

Verdade seja dita, o problema do endividamento no Brasil não se restringe aos cartões de crédito. As taxas de juros mais altas do mundo estão aqui há muito tempo. Talvez poucas pessoas se lembrem como foi bom para o Setor Financeiro o governo FHC. E de como não foi muito diferente os governos Lula I e II, com ninguém menos que o ex-presidente do Bank of Boston à frente do Banco Central durante oito anos. Os saltos no faturamento, lucros e aumento de patrimônio dos bancos e das empresas de cartões de crédito e de outros “serviços financeiros”, ano após ano nesse período, comprovam como somos bons – em todos os sentidos – para quem ganha muito dinheiro no País emprestando dinheiro alheio.

Foi preciso a extrema-direita no governo federal conseguir aprovar o crime contra a Economia Popular da “autonomia” do Banco Central e nomear um dos seus para presidir a instituição, para que a longa promiscuidade do Setor Financeiro à frente da política monetária brasileira – expressa historicamente na dança de cadeiras entre o setor privado e a diretoria do Banco Central – se tornasse alvo de crescente indignação, que se generalizou alguns meses após a posse do presidente Lula, quando ficou mais que evidente a impossibilidade do governo – de qualquer governo – melhorar a condição de vida da população brasileira com as taxas de juros praticadas pelo “mercado”.

Vai longe a crise financeira mundial, iniciada em 2008 nos Estados Unidos (EUA), que abateu, entre outras grandes, a Aracruz Celulose e a Sadia, empresas líderes em seus segmentos, que foram à falência pela ganância via derivativos. Nem tampouco das grandes do setor financeiro nos EUA que foram à falência, como o Lehman Brothers, ou que sobreviveram porque foram ajudadas pelo governo para não falir, sob o argumento de eram “grandes demais para quebrar”.

Pagar dívidas é a rotina mensal da quase totalidade da População Economicamente Ativa (PEA) no Brasil, quase 100 milhões de pessoas. Dívidas que nunca acabam, porque mais de 70% das pessoas na PEA ganham muito pouco: o salário-mínimo oficial, de R$1.320,00, corresponde a apenas 20% do salário mínimo calculado pelo Dieese em junho de 2023 (R$6.578,41). E também porque as dívidas são agigantadas pelo acréscimo de juros sobre juros, o que inviabiliza seu pagamento. Em determinadas épocas, tais dívidas são “perdoadas” em mais de 90%, o que só prova o quanto são artificiais. Depois que bancos e outras empresas lançam as dívidas não-pagas como prejuízo na declaração do Imposto de Renda, elas passam a fazer parte dos famosos “créditos podres”, comprados por valores muito baixos pelas empresas “abutre”, que atacam diuturnamente as pessoas com essas dívidas, com grande quantidade de mensagens e ligações.

Viciamos em dinheiro caro, nos últimos 30 anos pelo menos. Enquanto as maiores economias do mundo praticavam até juros negativos, no Brasil sempre foi uma festa para os banqueiros, nacionais e internacionais – a ponto da lucratividade aqui ser maior do que a obtida em suas matrizes. Largar esse vício antigo será difícil, por causa da publicidade onipresente, que banca boa parte da grande mídia, e muitas atividades culturais, de entretenimento e esportivas. Com isso, entorpecem milhões de pessoas, que não se dão conta de quanto estão dependentes – 30% da renda das famílias no Brasil é utilizada para pagar dívidas.

Para livrar-se do vício do dinheiro caro, precisamos ir muito além da indignação tardia com os juros altos extorquidos da população brasileira pela agiotagem legalizada. O sistema funciona às custas do dinheiro público também, em uma lógica na qual o Estado, através do Banco Central, aumenta as taxas de juros a serem pagas pelos governos nos três níveis, via dívidas públicas. E essa apropriação de dinheiro público segue firme e forte, enquanto nos distraímos com fraudes como a ocorrida nas Lojas Americanas, de possíveis 46 bilhões de reais, que indignam mais as pessoas bem-informadas no Brasil, do que o custo do serviço da dívida do governo federal, de R$1,88 trilhão em 2022, equivalente a 46,3% do Orçamento Geral da União (OGU) – o que significa que esse Himalaia de dinheiro vai para menos de 100 mil pessoas que vivem de juros, quantidade de recursos equivalente a mais que o dobro do total gasto com a Previdência (20,7%). E 13,7 vezes o gasto anual com a Saúde e 17 vezes o que é gasto com Educação.

Por isso, por mais que o governo federal se esforce com o Minha Casa Minha Vida, simplesmente não há recursos públicos disponíveis nem dinheiro barato para acabar com o déficit habitacional brasileiro, de quase oito milhões de moradias. Nem tampouco para o estímulo à compra de móveis e eletrodomésticos, aumento da utilização da aviação doméstica etc., capazes de ampliar o mercado interno e proporcionar o retorno à condição de pleno emprego que havia em 2013/ 2014, que possibilitou a saída do Brasil do Mapa da Fome.

A decisão e as iniciativas do governo Lula para a reindustrialização ficarão no ora veja, se não fizermos uma “revolução” contra o vício dinheiro caro e a apropriação cada vez maior dos recursos públicos pelo setor financeiro dominante. Como construir as ferrovias e outras obras de infraestrutura necessárias à competitividade internacional, com o governo federal com tão baixa capacidade de investimento e sem recursos baratos a longo prazo?

(*) Professor, geógrafo e mestre em “Estado, Governo e Políticas Públicas”

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


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