Opinião
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13 de junho de 2023
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07:07

Saber e arte, antídotos contra o mal (Coluna da APPOA)

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Robson de Freitas Pereira (*)

“Onde eu possa plantar meus amigos/ meus discos e livros e nada mais”.
Zé Rodrix & Tavito¹

Dois lançamentos um livro e um disco. O livro: “O grupo e o mal- Estudo sobre a perversão social”, de Contardo Calligaris. O álbum: “Swing colors”, de Mariano Massolo. Duas produções diferentes, mas justamente por sua diversidade cumprem uma função essencial de podermos ter como referencias para enfrentar o mal-estar que nos assola em momentos mais diversos. Como já se disse, ética e estética não precisam, nem podem estar dissociadas, pois saber e arte são formas efetivas de podermos avançar civilizatoriamente, pelo menos um pouco.

O livro de Contardo é fruto de sua tese defendida na França, em 1991 ² e longamente apresentada e discutida conosco desde os anos 80, quando o autor, estabelecendo residência no Brasil, generosamente desdobrou e discutiu suas ideias conosco em várias cidades do país e também no exterior.

O psicanalista Jacques Lacan disse em um de seus seminários, que ainda estávamos longe de ter na ponta dos dedos, ou da língua, um saber sobre o gozo e que as contribuições para isso seriam sempre contingenciais, elaboradas ao longo do caminho ( nos lembrando dos versos de Antonio Machado “caminante no hay caminhos/al andar se hace el caminho). Contardo produziu sua contribuição seguindo esta trilha. Só que o destino impediu que ele desse conta de sua edição em livro e em português. Daí a importância de seus colegas e amigos Jurandir Freire Costa e Octavio Souza,  a quem ele menciona explicitamente nos agradecimentos originais, terem se encarregado de editar e colocar à disposição dos leitores -não somente especializados em psicanálise, uma obra inspiradora de debates e reflexões. Como eles explicam em nota; por se tratar de uma publicação póstuma, optaram por introduzir cortes e alterações mínimas que não interferissem no tratamento do tema; a perversão social como paixão pela instrumentalidade. 

Em outras palavras, o homem comum pode fazer monstruosidades; isto depende de contingências que extrapolam concepções que tentam estabelecer um domínio sociológico, econômico ou psicológico. Além disso, a sexualidade humana não pode ser julgada a priori por razões morais, ou religiosas como acontece com frequência.

Como Jurandir escreveu no prefácio, Contardo colocou seu estilo neste trabalho. “Forçando os limites do pensável em qualquer tema que despertasse seu interesse”. E do interesse geral; pois hoje em dia com ascensão de movimentos autoritários ou que buscam na violência e na discriminação dos diferentes a solução de seus problemas a questão é urgente. O autor tratou de analisar o problema em quatro eixos: trevas, cenário, clínica e de volta ao social. “O primeiro concerne a descrição do mal na forma da corrosão do caráter resultante da depredação do patrimônio cultural democrático. O segundo visando o modo como o sujeito pode render-se ao ethos da servidão voluntária…O terceiro buscando a distinção entre “perversão social” e “perversão sexual” conceitos fundamentais para entender a tese do autor. O quarto, busca compreender quais são as premissas socioculturais da tentação autoritária/totalitária. O que leva grupos ou sociedades contemporâneas a procurar destruir preceitos humanistas mínimos, como respeito à integridade física e moral do outro e às instituições simbólico-materiais que garantem a vigência destes preceitos?”

Na leitura vamos acompanhar a discussão com vários autores dos mais diversos campos e precisões, como a distinção entre “ideal do eu” e “eu-ideal” que interessam aos psicanalistas conceitual e clinicamente. Acompanhamos a retomada de traumas históricos como a Shoah, o genocídio provocado pela Alemanha hitlerista e seus “funcionários exemplares” e a apresentação de casos clínicos que se articulam com o tema. Sempre com este intuito de conversar com os clássicos, buscar inovar, para estar à altura de seu tempo.

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 O álbum de Mariano Massolo, Swing colors, com nome indica faz este trabalho de integração de diferentes ritmos, gêneros e nacionalidades através da música. Fusão de cores do jazz onde, Samba, Blues, Mardi-Gras e suingue comparecem renovados por este portenho que atravessa Buenos Aires, New Orleans, Chigago e Rio de Janeiro, com sua harmônica e arranjos para sopros, percussão e vozes variadas. Passa por Benny Goodman, Baden Powell, Vinicius e composições próprias. Faz dançar e cantar, efeitos que combatem o mal. Fazendo valer aquela máxima freudiana de que temos que nos apropriar da herança que recebemos, à qual Lacan complementou dizendo que só podemos superar as gerações que nos precederam passando por suas referencias, seus significantes. Um totalitarismo não admite este movimento em busca da transformação em um mundo onde as diferenças sexuais, religiosas, de migrações diversas estão na ordem do dia. Mesmo que muitas vezes tenhamos que lidar com uma inquietante estranheza.

Por isto, enfrentar a violência com saber e arte tem um sabor especial, para lembrar Roland Barthes que propôs entremear o sabor naquilo que fazemos, transformando em conceito a escuta, os fragmentos do amor e valorizando o desejo. Contardo dizia que se tivesse que apontar um mestre, este teria sido Roland Barthes. Para quem o conheceu, isto não queria dizer pouca coisa.

A musicalidade de sua voz, agora feito em texto, ainda ressoa. Agora com ajuda e memória dos amigos.  

Notas

[1] Casa no campo, composta em 1971, quando os dois faziam parte do Som Imaginário – Wagner Tiso, Toninho Horta, Robertinho Silva, Frederiko, Naná Vasconcelos e Luis Alves também compunham o grupo que acompanhava Milton nascimento e Gal Costa.

[2] No original “Recherche sur la perversion comme pathologie social: la passion de l´instrumentalité”. 

(*) Robson de Freitas Pereira é psicanalista; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). Publicou, entre outros: O divã e a tela – cinema e psicanálise (Porto Alegre: Artes & Ofícios, 2011) e Sargento Pimenta forever (Porto Alegre: Libretos, 2007).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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