Opinião
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23 de junho de 2023
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14:12

A Lei Paulo Gustavo é um orçamento participativo na Cultura (por Tarson Núñez)

Ator morreu em 4 de maio de 2021, em decorrência de complicações da covid-19. (Divulgação/PT.org)
Ator morreu em 4 de maio de 2021, em decorrência de complicações da covid-19. (Divulgação/PT.org)

Tarson Núñez (*)

A presença da ministra da cultura, Margarete Menezes em Porto Alegre talvez contribua para romper o silêncio da mídia corporativa acerca da Lei Paulo Gustavo (LPG). Lançada no dia 11 de maio, a LPG não tem recebido até agora uma atenção proporcional à sua importância. Esta lei está injetando R$ 3 bilhões em apoio a atividades culturais em todos os estados e municípios brasileiros. Para o estado do Rio Grande do Sul serão alocados R$ 90 milhões, além de mais R$ 104 milhões que irão diretamente para as prefeituras. É um investimento sem precedentes, que sinaliza a importância dada às atividades culturais pelo governo de Lula. Desde a campanha eleitoral o presidente vem ressaltando a importância das expressões culturais como parte de um projeto de país, tanto do ponto de vista do seu valor intrínseco, estritamente cultural, como do ponto de vista do seu valor econômico, como geradoras de emprego, de renda, competitividade e inovação.

Um estudo recente elaborado pela Fundação Itaú Cultural mostra que o PIB da Economia da Cultura e da Indústria Criativa corresponde a 3,11% do PIB nacional, impactando na economia do país mais do que a própria indústria automobilística (2,5%) e quase tanto quanto a construção (4%). A economia criativa gera 7,4 milhões de postos de trabalho, 7% do total de empregos no país, e envolve mais de 130 mil empresas, 3,5% do total de empresas existentes no país. Em 2022 os setores criativos realizaram cerca de US$ 3,5 bilhões em exportações liquidas de bens criativos, o que representa 2,4% do total de exportações do país. Por tudo isso fica evidente a importância estratégica da cultura como um instrumento para o desenvolvimento econômico do país.

Mas o tema da Lei Paulo Gustavo tem também uma outra dimensão fundamental, que vai muito além do seu impacto na economia. Este impacto tem a ver com a forma através da qual estes recursos serão alocados. A Lei Paulo Gustavo estabelece que a decisão acerca de como serão aplicados os recursos deve passar por um processo estruturado, amplo e inclusivo de participação dos cidadãos. Em todos os estados e em cada um dos municípios a decisão sobre os recursos não fica somente a cargo dos governos, ela precisa passar por uma discussão com a sociedade civil, especialmente com os artistas e produtores culturais. Por isso é possível afirmar que a LPG se constitui em um verdadeiro Orçamento Participativo da Cultura.

A Lei, assim como os vários decretos que normatizam a sua aplicação, estabelece formalmente um conjunto de procedimentos de escuta das comunidades em cada uma das cidades e nos estados da federação. Para receber os recursos os estados e prefeituras precisam elaborar um Plano de Trabalho e um conjunto de editais que estabeleçam regras transparentes e democráticas de distribuição dos recursos. Os artistas e produtores culturais, assim como todo e qualquer cidadão interessado, têm o direito de participar da discussão acerca do plano e de opinar sobre os critérios e as características dos editais. Nenhum recurso será acessado sem que um processo aberto e democrático de discussão tenha estabelecido os critérios da sua distribuição. 

Mais do que isto, a LPG envolve um processo democrático e inclusivo. Além da participação dos interessados diretos na discussão e decisão sobre os recursos, existem também critérios institucionais que visam direcionar os recursos para os setores mais necessitados. Há cotas e critérios voltados para garantir que comunidades periféricas, negros, indígenas, quilombolas, possam também acessar os recursos e implementar seus projetos culturais. Participação democrática e inclusão são, portanto, dois pilares da implementação dos recursos da Lei Paulo Gustavo.

Além deste processo de participação direta dos cidadãos nas decisões acerca da alocação de recursos, a LPG visa também fortalecer toda uma institucionalidade democrática na gestão das políticas culturais. A aplicação da lei passa também pelo fortalecimento do Sistema Nacional de Cultura. Este sistema, incorporado à Constituição Federal em 2012, estabelece um processo de gestão e promoção das políticas públicas de cultura democráticas e permanentes, pactuadas entre os entes da Federação (União, Estados, DF e Municípios) e a sociedade. O SNC é organizado em regime de colaboração, de forma descentralizada e participativa, tendo por objetivo promover o desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercício dos direitos culturais.

O SNC estabelece que todos os entes da federação devem constituir seu Conselho de Cultura, um espaço institucional que garanta a participação direta da sociedade civil na discussão e na gestão das políticas públicas estaduais e municipais. Este conselho deve fazer um amplo processo de discussão na sociedade para elaborar um Plano, estadual ou municipal, assim como constituir um Fundo direcionado para o fomento das atividades culturais. A Lei Paulo Gustavo cumpre também o papel de fortalecer o Sistema, pois associa diretamente o acesso aos recursos à organização das estruturas do sistema em cada território.

Portanto os recursos financeiros da LPG têm uma dimensão econômica, mas também incide sobre a democratização da gestão dos recursos públicos para a cultura. Os cidadãos são chamados a discutir e decidir sobre a alocação dos recursos, mas os estados e municípios terão que também fortalecer os mecanismos de gestão democrática na área da cultura em uma escala mais ampla e permanente. A lei vai ter um grande impacto no financiamento à cultura, mas também vai ajudar no aperfeiçoamento dos mecanismos institucionais de gestão das políticas culturais. 

A implementação da LPG está abrindo um amplo processo de debate público sobre o fomento à cultura, com ampla participação popular. Este debate não é um debate abstrato, teórico, sobre diretrizes ou propostas de políticas públicas, mas um debate concreto sobre a alocação dos recursos previstos na lei. Os cidadãos de cada cidade, de cada estado, vão poder decidir as regras dos editais que vão regular o acesso aos recursos de fomento. Quem pode concorrer? Quantos projetos poderão ser financiados? Qual o volume de recursos para cada edital? Quais os prazos e condições? São questões fundamentais que vão orientar o uso dos recursos da lei.

Os recursos da Lei Paulo Gustavo são oriundos do Fundo Setorial Audiovisual. Por conta disso serão, em sua maioria, direcionados para fomentar projetos audiovisuais. Neste conceito estão incluídos longa-metragens de cinema e séries de TV, que são projetos mais caros e profissionais. Documentários, videoclipes e outros projetos audiovisuais também podem ser financiados. Mas os recursos da LPG não deverão atender apenas as empresas constituídas, profissionalizadas e com CNPJ e registro na ANCINE. Existe espaço também para projetos mais simples, de pessoas que são iniciantes, que podem encontrar nos recursos da LPG um caminho para entrar no mundo do audiovisual. O balanço entre o montante de recursos que vai para projetos mais elaborados, empresariais, e projetos de iniciantes, vai ser estabelecido em cada cidade quando da discussão dos editais.

Além disso a Lei também vai aportar recursos para a capacitação de profissionais no âmbito do audiovisual, contribuindo na formação e qualificação da mão-de-obra no setor. E mais, a lei prevê também recursos para montar, equipar e qualificar salas de exibição. Novas salas de cinema e espaços audiovisuais vão ser instalados em todos os municípios, ampliando o espaço para que a produção gerada pela LPG consiga ser acessível para a população, fortalecendo nosso mercado audiovisual. E, por fim, ainda que a maioria dos recursos sejam direcionados para o audiovisual, há também uma parte importante dos recursos que deve ser aplicada em outras áreas da cultura.

A Lei Paulo Gustavo vai ter impactos econômicos em todo o país, resultantes da aplicação de R$ 3 bilhões em projetos audiovisuais e culturais em distintas formas e tamanhos. Isto vai significar a geração de dezenas de milhares de postos de trabalho, o fortalecimento da cadeia produtiva do audiovisual e da cultura, assim como a ampliação da produção do setor em todo o país. Mas além desta dimensão econômica, de fortalecimento do setor audiovisual, a LPG é também uma importante iniciativa de democratização da gestão pública no país, gerando políticas públicas que estão sendo construídas pelo governo em diálogo permanente com a sociedade civil.

O processo da LPG, portanto, é uma experiência de democracia participativa, em escala nacional, atingindo todos os municípios do país. Neste sentido o compromisso de Lula de promover práticas democráticas e experiências participativas na gestão pública se materializa também no campo da cultura. Para além de eleger seus governantes, os cidadãos passam a ter um papel ativo na deliberação acerca do uso dos recursos públicos. Por isso é possível chamar a Lei Paulo Gustavo de Orçamento Participativo da Cultura. 

Esta experiência democratizante, no entanto, depende de uma adesão ativa de governos estaduais e municipais. As diversas unidades da federação precisam ser capazes de promover este processo de escuta, debate e deliberação democrática. Para receber e aplicar os recursos nas suas cidades e estados, os governantes locais precisam ser capazes de garantir espaços efetivos de participação. Mais do que isto, os municípios e governos precisam se comprometer a acatar as decisões da sociedade, através de fóruns, consultas, debates e reuniões abertas à participação de todos os cidadãos, especialmente dos artistas e produtores culturais. 

O governo federal faz a sua parte, alocando os recursos. Cabe agora à sociedade civil, e especialmente aos trabalhadores da cultura, os produtores, os artistas e a todos os cidadãos interessados garantir que as dimensões participativas da implementação da LPG sejam plenamente implementadas. A sociedade civil organizada precisa atuar de maneira a fazer com que o processo seja efetivamente democrático em cada uma das cidades, em cada um dos estados. Só assim a LPG vai conseguir cumprir com seu duplo objetivo, apoiar a cultura e fortalecer a democracia em nosso país.

(*) Doutor em Ciência Política pela UFRGS e pesquisador do INCT Observatório das Metrópoles

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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