Opinião
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30 de junho de 2023
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14:39

A Corsan e o fantasma de Margareth Thatcher (por Tarson Núñez)

Foto: Acom Corsan
Foto: Acom Corsan

Tarson Núñez (*)

O debate sobre a privatização da água no Rio Grande do Sul segue acontecendo, tendo como principal característica o fato de que a discussão continua em grande parte caracterizada por uma completa ausência de objetividade e de evidências empíricas. Um debate totalmente distante da realidade. O bloco privatizante, composto pelo setor empresarial, os partidos conservadores e a mídia corporativa, insiste com suas teses abstratas acerca dos benefícios da privatização. “O setor privado é mais eficiente”, “com a privatização haverá mais investimentos”, “as metas de universalização só vão acontecer com investimento privado”, são basicamente os argumentos utilizados para defender a entrega da água para as empresas privadas.

No entanto a realidade segue batendo à nossa porta e, nesta última semana de junho, alguns acontecimentos bombásticos apontam de maneira muito objetiva e incontestável os resultados da privatização na vida real. O fantasma da “Dama de Ferro” volta a assombrar as mentes dos vivos por conta dos resultados da privatização das águas no Reino Unido. Thatcher privatizou todos os serviços de água do país em 1989, como parte de seu programa de reformas neoliberais. Mas 24 anos depois o legado desta privatização emerge como um dos maiores fracassos da história daquele país. Além de terem se revelado em um desastre completo do ponto de vista do preço e da qualidade dos serviços prestado, as empresas de água daquele país se encontram à beira do colapso financeiro, a ponto do próprio governo do partido conservador estarem cogitando na reestatização dos serviços.

Já descrevi aqui mesmo no Sul 21 os resultados da privatização das águas naquele país, do ponto de vista do seu desempenho. Com a privatização os preços das tarifas subiram exponencialmente. Em 2020 o preço da água era 40% maior em termos reais, a ponto de que em 2022 quase um quarto dos usuários dos serviços declararam que tinham dificuldade para pagar suas contas. Os lucros dos empresários foram espantosos: em trinta anos as empresas concessionárias privadas pagaram mais de 72 bilhões de libras em dividendos aos seus acionistas. A qualidade do serviço se deteriorou a ponto de que hoje 86% dos rios do país estão contaminados por esgoto. Segundo dados da Agência Ambiental daquele país, houve mais de 400.000 descargas de esgoto in natura nos rios ingleses apenas em 2020. No litoral do país mais de 10% dos dias do verão daquele ano foram perdidos por conta dos derramamentos de esgoto, que contaminaram os rios e as praias no país. Um completo desastre.

Mas esta semana tivemos ainda uma outra novidade, que vem repercutindo em todos os meios de comunicação daquele país (ainda que, não por acaso, nada disso ganhe visibilidade na mídia brasileira). O fato é que, mesmo prestando péssimos serviços e impondo altas tarifas para a população, as empresas privadas de água do Reino Unido estão em péssima situação financeira, à beira do colapso. Segundo o jornal The Guardian da última quarta-feira a maior delas, a Thames Water, que atende a mais de 15 milhões de consumidores, acaba de declarar aos órgãos reguladores que não poderá seguir operando caso não haja “um aporte multibilionário” por parte do governo. Em conjunto, as nove companhias privadas que dominam o mercado de água e saneamento naquele país têm uma dívida que chega a 54 bilhões de libras.

E estas informações não tem origem apenas em um veículo progressista, de centro esquerda, como o The Guardian. Também o Daily Mail, conservador, repercutiu o colapso do saneamento privado. Na sua reportagem sobre a situação o jornal chega a mencionar que “circulam informações de que o governo estaria preparando o caminho para uma nacionalização de emergência da companhia”. O que revela novamente o ciclo tradicional da dinâmica de privatização dos serviços públicos. Acontece a privatização, as tarifas se elevam, grandes lucros são apropriados pelos acionistas, a qualidade dos serviços decai, e quando os prejuízos se tornam maiores o Estado e os consumidores são obrigados a arcar com os custos. Um parlamentar da oposição declarou à BBC comentou que agora “os contribuintes serão expostos à dívida e aos custos crescentes gerados por uma grande companhia”.

Não se trata apenas do caso de uma empresa isolada, a Thames Water é a maior delas, mas todas as demais apresentam o mesmo quadro de tarifas caras, serviços ruins e alto endividamento. A ineficiência é do modelo privado de gestão dos serviços públicos, que foca no lucro imediato e na contenção de investimentos em detrimento da qualidade dos serviços. Todo o sistema de gestão dos serviços de água britânico está à beira do colapso. E como sempre, o Estado e os contribuintes é que irão arcar com os custos desta falência, enquanto os acionistas e os gestores já terão se apropriado de uma fatia importante de lucros. Segundo a BBC, “entre 1991 e 2021 as companhias de água pagaram 50,6 bilhões de libras em dividendos”. Quando estes lucros cessam, o custo fica para a sociedade. 

Em 1989, quando da privatização, as operadoras privadas receberam empresas que não tinham dívidas. No entanto, mais de 30 anos depois, as empresas se encontram em uma situação de pré-falimentar. E isto aconteceu sem que estas empresas tenham realizado grandes investimentos. Os gastos em manutenção das redes de água foram mínimos, resultando em uma situação de quebras constantes e falhas no abastecimento. Segundo um antigo diretor da Thames Water reconheceu ao The Guardian “nós temos um encanamento que vem dos tempos da rainha Vitória, que simplesmente não dá conta do crescimento da população e dos impactos da mudança climática. Tentamos corrigir este problema, mas nenhum investidor quer cobrir o custo de enfrentar esses desafios sem ter um retorno”. 

É este modelo, injusto, caro e ineficiente, que penaliza a sociedade em detrimento do lucro privado, que vem sendo apresentado no Rio Grande do Sul como a solução para os serviços de água e saneamento. O fantasma de Thacher paira sobre o nosso estado, trazendo consigo todo um conjunto de problemas que ficarão muito claros no médio e no longo prazo. Serviços não concorrenciais, como água e eletricidade, geram monopólios privados, onde os consumidores são submetidos a uma situação de completa falta de opções. No caso do Rio Grande do Sul, empresas lucrativas como a CORSAN e o DMAE estão prestes a ser entregues, por um preço vil, ao setor privado. E o resultado, como podemos ver no caso do Reino Unido, tende a ser o de uma tragédia anunciada.

No entanto o debate público em nosso estado segue bloqueado, por conta do compromisso ideológico da nossa mídia corporativa com o privatismo. É interessante notar que durante todo o período em que o tema vem sendo discutido nos últimos anos, nunca se debatem os casos concretos de privatização, apenas teses abstratas e ideológicas. Isto porque qualquer análise séria do tema, que seja baseada em experiências concretas, demonstra de forma indiscutível que a privatização da água, em qualquer lugar do mundo, sempre foi um fracasso. Mas nossa mídia corporativa segue hipnotizada pelo fantasma da “Dama de Ferro”.

(*) Doutor em Ciência Política pela UFRGS e pesquisador do INCT Observatório das Metrópoles

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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