Opinião
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21 de abril de 2023
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13:36

Um revolucionário pedido de socorro (por Sandra Bitencourt e Laura Barreras)

Mônica Baltodano, ex-comandante guerrilheira na Revolução Sandinista (Foto: Arquivo Pessoal)
Mônica Baltodano, ex-comandante guerrilheira na Revolução Sandinista (Foto: Arquivo Pessoal)

Sandra Bitencourt e Laura Barreras (*)

A voz é suave, os gestos são comovidos, mas a palavra é firme. A comandante Mónica Baltodano declara um incontestável caráter subversivo, revolucionário e político de sua trajetória e da sua denúncia. Nascida em 1954 na cidade de León, na Nicarágua, terceira filha de uma família de 10 irmãos, aos 15 anos começou a militar, aos 18 entrou na Frente Sandinista de Libertação Nacional, aos 20 entrou na clandestinidade. Aos 69, mãe de quatro filhos, a revolucionária Mónica empreende uma jornada pela denúncia sobre as violações de Direitos Humanos na Nicarágua sob o 4º mandato consecutivo do presidente Daniel Ortega. Mónica é vítima da estarrecedora perseguição aos opositores do governo, que no início deste ano deportou 222 presos políticos e 94 pessoas consideradas ”traidoras da pátria“ . Todos perderam suas cidadanias. Mónica perdeu tudo: casa, cidadania, seu registro civil, sua aposentadoria, seus direitos, sua capacidade de manutenção e sobrevivência. Vive na Costa Rica, com a ajuda financeira dos filhos. O relato contundente ocorreu durante almoço em Porto Alegre, com a presença de várias personalidades da área jurídica, acadêmica, estudantil e cultural. Um dos organizadores foi o ex-governador Tarso Genro.

Segundo a antiga revolucionária e dirigente da Frente Sandinista de Libertação Nacional, a FSLN também amarga uma série de violações no seu propósito e papel: sem congressos, sem organização, nem mesmo direção nacional eleita, passou a ser um mero aparato partidário que fortaleceu a figura personalista de Daniel Ortega e hoje serve a ele e sua mulher e vice, Rosario Murillo.

Para a militante, somente a incorporação massiva do povo à FSLN levou à vitória da Revolução. Agora, pede socorro à comunidade internacional, especialmente ao campo progressista, para que compreendam o quanto a defesa do Regime de Ortega prejudica a esquerda no seu país.

Ponto a ponto ela foi explicando a deterioração do espírito revolucionário, a traição de Ortega à revolução e a falácia sobre o suposto combate ao imperialismo norte americano como justificativa para a radicalização do regime. Com a ajuda da professora nicaraguense, Ana Mercedes Icaza, retomamos os principais pontos do relato.

Mônica explicou que a revolução sandinista gerou muitas esperanças, que despertou grande solidariedade internacional e que tinha algumas características que a faziam especial: uniu o marxismo com a teologia da libertação, tendo muitos sacerdotes que se somaram ativamente, como Ernesto e Fernando Cardenal e muitos jovens que iniciaram fazendo trabalho nos bairros das periferias e depois se integraram à luta organizativa e armada para derrubar a ditadura de Somoza. Proclamou também o não alinhamento, reafirmando um projeto de soberania nacional e afirmou a economia mista, tendo a propriedade estatal como um eixo importante, mas não exclusivo do seu projeto de desenvolvimento. Depois do triunfo revolucionário de 1979, mais de 50.000 jovens morreram lutando contra a contrarrevolução, boa parte da estrutura produtiva do país foi destruída. A busca pela paz teve um alto custo.

Durante 16 anos, três governos neoliberais se sucederam no país. Nesse período, acontecem uma série de rupturas dentro da FSLN, que vão levando o próprio partido a um processo de afastamento dos ideais da revolução sandinista. Internamente, a FSLN se divide, sendo três os principais momentos de ruptura: em 1995, quando se cria o Movimento Renovador Sandinista, o MRS; depois, em 1998, quando se dá o pacto entre a FSLN e o então presidente de direita Arnoldo Alemán, momento em que Mónica junto com outros quadros deixam a FSLN, e o último em 2005, quando se reprime um grupo que tentava, internamente, abrir espaço para um outro candidato à presidência que não fosse Daniel Ortega. É importante entender que o primeiro momento da destruição da revolução se dá com a eliminação das instâncias coletivas de decisão da FSLN, que deixa de ser uma organização democrática e passa a ser dominada por uma única pessoa, Daniel Ortega, o qual controla e decide a partir do seu círculo pessoal e familiar.

Daniel Ortega volta ao governo em 2006, após ganhar as eleições de 2005 com apenas 38% dos votos. Desde então, se mantém no poder, reelegendo-se, através de mecanismos questionáveis, em 2011 e em 2016. Este retorno ao governo é marcado pelo abandono dos princípios do sandinismo, onde o que conta é a conquista e a manutenção do poder a qualquer custo. E esse custo se expressa em uma série de guinadas que vão estruturando sua volta ao poder: pactuação com a extrema direita oligárquica, aproximação da hierarquia da Igreja Católica, aliança com o grande capital financeiro, implementação de diversos acordos com os Estados Unidos.

A política econômica do Daniel Ortega segue todos os preceitos neoliberais; o governo segue os lineamentos do FMI e do Banco Mundial, que o elogiam de maneira sistemática ao longo dos anos, inclusive recentemente. É um modelo que aumenta a concentração de renda e mantém o país entre os mais pobres da América Latina.

Não há nada de luta ou contestação, na prática das relações, ao dito imperialismo americano, acionado para justificar o sufocamento das vozes dissidentes,  afirma Mónica.

Em abril de 2018 explodiu uma série de protestos contra as reformas de previdência social que oneravam tanto quem já estava aposentado. Eram manifestações que expressavam um descontentamento que vinha se acumulando ao longo dos anos. Os protestos foram brutalmente reprimidos, causando a morte de 355 pessoas num período de 3 meses.

A escalada repressiva se tornou mais aguda a partir de maio de 2021, com a proximidade das eleições em novembro desse ano. O regime mandou prender sete candidatos presidenciais, cancelou o registro dos partidos políticos que podiam lhe fazer oposição e prendeu seus principais dirigentes, bem como lideranças de organizações da sociedade civil, estudantes, camponeses, empresários, jornalistas, defensores de direitos humanos. Entre elas, históricos ex-guerrilheiros da revolução de 1979, como Victor Hugo Tinoco e os comandantes Dora Maria Téllez e Hugo Torres Jiménez. Este último faleceu em circunstância pouco explicadas no cárcere em junho de 2022.

As eleições de 2021 se realizaram nesse contexto: sem partidos políticos de oposição, sem meios de comunicação independentes, com as principais lideranças presas ou exiladas, com o Poder Eleitoral totalmente controlado. Com uma abstenção de mais de 70% (apesar da utilização de muita pressão para que a população fosse votar) Daniel Ortega se proclamou ganhador e assumiu seu quarto mandato consecutivo, novamente com sua esposa Rosário Murillo de vice presidenta.

Desde então, o estado policial se aprofunda no país. Na Nicarágua não há direito a associação, não há liberdades políticas, não há Estado de Direito. Alguns dados corroboram com a descrição feita por Mónica: mais de 3.500 ONGs foram fechadas no último ano; as reuniões de qualquer tipo são proibidas; todos os meios de comunicação independentes foram fechados e suas instalações ocupadas; a perseguição política é sistemática e permanente. Atualmente há mais de 50 presos políticos, 20 dos quais foram detidos nas últimas semanas. 317 pessoas tiveram sua nacionalidade retirada. Foram ainda acrescentadas outras medidas: cancelamento de suas aposentadorias, confisco de seus bens e até o apagamento de seus registros civis.

Mónica apela: é importante que a esquerda no Brasil entenda quem é o Daniel Ortega e como este traiu os princípios da revolução sandinista. É necessário que a esquerda condene as violações de direitos humanos que ele vem perpetrando, não deixando que a direita e a extrema direita assumam esta bandeira de forma oportunista.

A fala de Mónica, já embargada ao final do relato, é impactante no grupo. A reação veio em forma de abraços. Não é possível silenciar. A voz dos democratas progressistas, dos defensores da utopia da igualdade social e de uma sociedade baseada na liberdade e na justiça deve se erguer solidária contra uma ditadura que se fez com a derrota da revolução.

(*) Sandra Bitencourt é jornalista, doutora em Comunicação e Informação e Diretora Executiva do Instituto Novos Paradigmas (INP). Laura Barreras é estudante, presidente do Centro Acadêmico da Escola de Administração da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e militante do Levante Popular da Juventude.

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