Opinião
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14 de abril de 2023
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17:11

Por uma política de mobilidade democrática, inclusiva e sustentável (por Mauri Cruz)

Foto: Joana Berwanger/Sul21
Foto: Joana Berwanger/Sul21

Mauri Cruz (*)

Uma contribuição a Audiência Pública da Comissão de Serviços Públicos da AL/RS

No dia 13 de abril, a Comissão de Serviços Públicos da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, coordenada pela Dep. Stela Farias (PT/RS) e a pedido do Dep. Miguel Rossetto (PT/RS) realizou uma audiência pública sobre a crise no transporte metropolitano. Excelente iniciativa e um ótimo debate que me suscitou retomar as bases de nossa concepção de mobilidade sustentável. Fiquei com a impressão de que talvez tenhamos perdido o fio da meada construída a duras penas sobre nossa política de mobilidade. A maior crítica que sempre fizemos é que a política de mobilidade centrada na supremacia do automóvel preserva e aprofunda as desigualdades sociais. Tomei a liberdade de retomar nosso debate estratégico pensando em contribuir na construção das soluções que tanto a RMPA necessita.

É lugar comum afirmar que é no município que as pessoas realmente vivem.  Isso porque, é no município que se concretizam a maioria das dimensões que garantem a reprodução da vida de cada um(a): família, trabalho, escola, lazer, proteção, convívio, relações com o ambiente.  Usufruir de forma plena destas várias dimensões, requer o acesso ao território municipal, é a chamada condição de mobilidade. Neste sentido, pode-se definir mobilidade como a capacidade que cada individuo possui para circular em seu ambiente visando atender a todas as suas necessidades. Esta capacidade depende das condições físicas, econômicas e sociais de cada um. Portanto, a capacidade de mobilidade não é igual para todas as pessoas. Essa diferença ganha maior relevância em sociedades caracterizadas pela profunda desigualdade social e econômica, como é o caso da sociedade brasileira.

Visando superar estas diferenças, é que a Constituição Brasileira, define como direito essencial a livre circulação, o chamado direito de ir e vir e, mais que isso, determina ao estado brasileiro a responsabilidade de criar as condições para que todas as pessoas tenham plena capacidade de circulação em todos os espaços, sejam eles públicos ou privados. Desde a sua promulgação em 1988, a legislação tem sido cada vez mais afirmativa no sentido de garantir esse direito, seja com o novo Código Brasileiro de Trânsito (1997), com a criação do Estatuto das Cidades (2001), as novas normas de Planejamento Urbano e de Desenvolvimento Socioambiental (2001) e a Lei da Mobilidade Urbana (2012) que prioriza os modos não motorizados de deslocamento e circulação e cria regras de convivência de forma a equilibrar a relação entre os vários modais.

Em todas estas normas, para garantir a micro acessibilidade, caracterizada pela circulação interna nas moradias, prédios, em espaços privados comuns e nas calçadas e vias urbanas, as regras dos planos diretores estabelecem que os espaços de circulação sejam adaptados para todas as pessoas, criando condições para igualar as condições de acesso às pessoas com deficiência física, seja ela uma deficiência dos membros superiores ou inferiores, seja ela uma deficiência visual, de estatura ou ainda deficiências múltiplas. É obrigação do estado garantir que os espaços sejam acessíveis, reduzindo, portanto, o grau de desigualdade entre as pessoas, criando regras, por exemplo, para que os regulamentos de construções, os códigos de posturas e os padrões construtivos efetivamente garantam a capacidade de mobilidade, independente de suas capacidades individuais. Temos para nós que, deficiente é o espaço que não possui condições plenas de acessibilidade e não o indivíduo que não consegue ter acesso a estes espaços.

Já na macro acessibilidade, as normas legais definem que o planejamento urbano deve priorizar a circulação das pessoas em condições de igualdade, restringindo medidas que aprofundem as diferenças físicas, econômicas e sociais. É fundamental que haja clareza de que, a política de mobilidade sempre estará regulando relações de sujeitos desiguais que usufruem de forma diferente de um espaço no território. Por isso, a importância de uma política efetiva de mobilidade que se pretenda democrática e inclusiva. Muitas vezes, por desconhecimento, o gestor local pensa a circulação de sua cidade exclusivamente a partir das necessidades dos automóvel, como se todas as pessoas tivessem acesso aos veículos privados para circulação. 

Talvez muitos se surpreendam, mas as cidades com maiores índices de veículos por habitantes (taxa de motorização) estão na ordem de 0,5 veículo/habitante. Como a taxa é uma média e algumas pessoas possuem mais de um veículo, mesmo nestas cidades, mais de 50% da população não detém um automóvel para circular, dependendo de si, de alternativas públicas ou das alternativas informais de circulação. Por isso, a importância de uma política pública de mobilidade que pense, planeje e implemente alternativas de deslocamentos para todas as pessoas. E o modal prioritário para esta política é o transporte coletivo, público e de acesso universal.

É sabido que cidades com transporte coletivo de qualidade são cidades mais desenvolvidas. Isso porque, a divisão modal onde uma parcela significativa da sociedade não possui automóvel, tem impacto direto na política de desenvolvimento econômico e social dos municípios. Sem uma correta política de mobilidade que permita que, realmente, toda cidadania circule por todo território de forma plena, restringe-se as opções de desenvolvimento econômico, as oportunidades de arranjos produtivos locais ou mesmo a inserção do município num projeto de desenvolvimento regional de forma duradoura e sustentável. 

Com o advento dos aplicativos, essa realidade foi alterada porque surgiu uma opção bastante acessível de deslocamento, em especial, nas maiores cidades. Essa facilidade impactou de forma direta os sistemas de transportes públicos, retirando grande volume de passageiros dos serviços regulares de transporte coletivo. Essa queda de demanda, num primeiro momento, provocou a elevação das tarifas públicas acima dos índices inflacionários que, num ciclo vicioso, afastou ainda mais passageiros, resultando na falência dos serviços de transportes em várias cidades. No entanto, não são todas as famílias das classes C, D e E que conseguem utilizar regularmente os serviços de aplicativos e, quando conseguem, acabam destinando parte dos seus escassos recursos financeiros para esta opção que, na média, é maior onerosa que as tarifas de transporte públicos locais. 

Por tudo isso, a importância dos sistemas públicos de transportes coletivos tem retornado ao centro do debate da mobilidade nos municípios. Para manter os serviços funcionando, prefeitos e prefeitas têm se socorrido da opção do subsídio público aos serviços, sem, no entanto, alterar a forma de seu funcionamento, o chamado modelo de concessão. Em suma, mantém-se linhas regulares, com itinerários rígidos, veículos velhos e pouco acessíveis, com tarifa caras, com pontos de embarque e desembarque distantes e sem qualquer infraestrutura e conforto. Essas características, por si só, já resultam em evasão de passageiros para alternativas mais adequadas. Reforça a conclusão de que, só fica no transporte coletivo, quem não tem nenhuma outra opção de deslocamento.

Como iniciado neste breve artigo, mobilidade é a capacidade que cada individuo tem de circular num determinado território. Essa capacidade depende das suas condições físicas, econômicas e sociais e cabe ao estado promover as condições para que haja igualdade de condições de mobilidade. O desafio para que isso possa ocorrer é uma mudança radical da mentalidade de quem avalia, planeja, gerencia os serviços de mobilidade, de tal forma que seja possível repensar os serviços de transportes públicos.

Essa nova era da mobilidade nos municípios deve ter como elementos centrais a adoção das novas tecnologias disponíveis, o desafio de integração intermodal sem restrições de caráter físico ou econômico e de um planejamento centralizado num agente público, capaz de pensar e agir com rapidez e flexibilidade frente as mudanças no cotidiano das cidades. Urge constituir uma política de mobilidade democrática, inclusiva e sustentável.

Esta nova agenda deve incorporar temas como (1) a criação de um Sistema Único de Mobilidade (SUM) nos moldes do Sistema Único de Saúde (SUS), que seja pensado em âmbito nacional, com responsabilidades compartilhadas entre União, Estados e Municípios; (2) a criação de uma política pública de financiamento dos serviços de mobilidade aos moldes que são adotadas para direitos como saúde e educação; (3)  adoção da tarifa zero, pondo em prática o princípio constitucional de serviço público essencial à disposição de toda cidadania que orienta a organização de outros serviços como saúde e educação; (4) a descarbonização da frota de transporte coletivo, fortalecendo os modais ferroviários e rodoviários com combustíveis renováveis; (5) e a reorganização e fortalecimento da gestão pública de todos os serviços de mobilidade, incluindo aí, o cartão universal de mobilidade, aplicativos de transportes criados pelo próprio Poder Público e a criação de unidades de planejamento, operação e gestão dos serviços de mobilidade. 

Sem pensar novas propostas de mobilidade, não é possível desenvolver uma política de mobilidade que seja, efetivamente, democrática, inclusiva e sustentável. E sem o direito a mobilidade, não será possível recuperar as condições do estado brasileiro como indutor de uma sociedade que trate a todos indivíduos de forma plena no acesso aos seus demais direitos. 

(*) Advogado socioambiental, professor de direito à cidade e mobilidade urbana. Foi Secretário Municipal dos Transportes de Porto Alegre, Fundador e Presidente da EPTC e Diretor Presidente do DetranRS. É consultor da Usideias, e membro do Conselho Diretor do CAMP e do Instituto IDhES.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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